A velhice não é o fim


A seleta lista das grandes celebridades brasileiras perde, pouco a pouco, ilustres personalidades. No início deste ano, o Brasil se entristeceu com a partida do maior comediante que o país já teve, Chico Anysio, aos 80 anos de idade. Sua trajetória repleta de grandes personagens vai ficar marcada na mente da sociedade por muitas gerações. Mais recentemente, Hebe Camargo faleceu aos 83 anos, depois de uma privilegiada carreira de mais de seis décadas na televisão, atuando como atriz, cantora e apresentadora. No entanto, para além dos holofotes midiáticos, os quais vão, neste momento, prestar as devidas homenagens a esta artista, é necessário entender as nuances que envolvem as mortes desses dois célebres ícones da TV. Percebe-se em ambos os casos que a velhice pode ser vivida em total atividade e lucidez, por mais pejorativa que seja, para alguns, o inevitável envelhecimento.

Em muitos momentos da história da humanidade, a sabedoria estava intimamente vinculada à trajetória de vida dos anciãos, pessoas privilegiadas pelo tempo e que tiveram a oportunidade de vivenciar longos períodos de transformação da sociedade. Hoje, porém, a sabedoria dos mais velhos não é devidamente respeitada como em outrora. Ser velho nesta sociedade plastificada em cirurgias supérfluas, implantes robotizados e mutações estéticas diversas, corresponde há várias enfermidades pejorativas ditadas pela indústria cultural. Há um modelo prescrito no qual diz que viver bem é viver belo, eternamente “perfeito”, com uma aparência parnasiana, ou uma tela de um grande quadro, como se as marcas do tempo fossem cicatrizes queloides, as quais tivessem que ser rapidamente “atenuadas” para que o indivíduo faça parte desse universo opressor.

Essa limitação acaba excluindo aqueles idosos que optam por viver plenamente seus 60, 70, 80 anos ou mais, como se nessa idade não houvesse mais beleza física, nem tão pouco sexualidade. Este último, para muitos, é um dos principais preconceitos direcionados as mais velhos. Com a chegada da terceira idade, há quem pense que a vida sexual deve ser interrompida e aqueles que insistem em continuá-la são taxados de lascivos, sem vergonha, dentre outros símbolos classificatórios que tentam anular os fulgores do ato sexual nesta fase da vida. Esta ignorância é fomentada pelo desconhecimento do ser humano e das possibilidades que este pode exercer, sexualmente, ao longo dos anos. O sexo pode e deve ser sempre intenso e prazeroso em qualquer idade, basta, apenas que aja respeito pelo próprio corpo e, sobretudo a quebra de determinados tabus ancestrais que tentam enclausurar a nossa liberdade sexual.

Dai surgi um dos muitos mitos alimentados pela velhice, o da inutilidade. “O “senhor precisa descansar agora”, “ a senhora tem netos e bisnetos que precisam da sua orientação”, são algumas das muitas frases direcionadas a esse  público nesta fase da vida. Entretanto, tanto Chico quanto Hebe, entre muitos outros velhos famosos ou anônimos, há uma grande força de vontade de continuar trabalhando, produzindo, sendo útil, para essa sociedade inutilizada, onde tudo é rapidamente descartável, sem chance de reciclagem; onde o ser humano é consumido como um “fast food”. Prova disso são os inúmeros levantamentos feitos por entidades públicas informando que a população está vivendo mais e a receita da longevidade está numa vida saudável, mas também numa vida em atividade, na qual muitos idosos exercem diversas funções com lucidez e inegável primazia.

Apesar disso, os obstáculos que os idosos enfrentam para gozar da sua longevidade são incontáveis. No Brasil ainda não há uma cultura que dê o devido valor a esse importante grupo. São hospitais e postos de saúde despreparados para atender esses grupos. As ruas não dispõem de uma segurança para esses transeuntes, que precisam ter cuidados redobrados para não escorregarem e caírem em buracos e outros empecilhos existentes. E, o pior de todos, não há uma educação focada no respeito ao envelhecimento. Percebe-se isso em vários momentos do cotidiano, como em sinais de trânsito, dentro dos ônibus, em filas diversas, momentos que o desrespeito com o idoso, lamentavelmente, imperam. Há, na verdade, a amputação dos prazeres, a autodestruição da vida, como se a velhice aniquilasse o humano, preparando-o para a inevitável morte.

Infelizmente, esse pensamento continua sendo nutrido e perpetuado por muitos. Assumir a velhice é, portanto, assinar o contrato de falência, algo que paulatinamente vem sendo desconstruído. A morte de Chico e de Hebe são a prova disso. Ambos tiveram grandes carreiras, muitos amores e inúmeras conquistas até o fim da vida. Fora do âmbito artístico, muitas senhoras e senhores não ficam estagnados ao tempo ou as pressões sociais. Muitos estão vivos, trabalhando em novos projetos, criando significativas coisas para a posteridade. Além disso, alguns idosos se arriscam, enfrentando diversos preconceitos na busca de um novo amor, já que a idade avançada não limita os sentimentos ou as vontades mais íntimas. Pelo contrário, a experiência é um dos grandes requisitos para que grandes romances surjam, vinguem e sejam duradouros.

Por isso, a velhice não pode ser encarada como o fim, nem tão pouco deve ser ignorada como se a vida fosse uma eterna “terra do nunca”. A beleza de estar vivo é a capacidade de renovação ofertada pela nossa natureza. Nascemos, crescemos, às vezes, nos reproduzimos e, por fim, morremos. Esse ciclo natural imutável é lindo e pode ser vivido em plenitude se cada indivíduo permitir que isso aconteça. Da mesma forma que há beleza na infância, na adolescência e na idade adulta, há também na velhice. Isso se estende também para temas ligados a sexo, sexualidade, autoestima, trabalho e autonomia. Logo, negar o direito de viver a velhice em plenitude é estratificar uma sábia fase de vida, na qual muito pode ser aproveitado. A sociedade deve desnudar-se das máscaras da jovialidade estética, da moral ortodoxa e da inútil busca pela perfeição física e encontrar outros valores importantes que só são adquiridos com o tempo. Ser jovem não é apenas um estado momentâneo, mas sim uma eterna construção do espírito.

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