Alegria agora!



No último domingo, o Fantástico noticiou uma matéria que surpreendeu o país: a cantora Daniela Mercury assumia nacionalmente uma relação homoafetiva com outra mulher. Após ter a sua bissexualidade confirmada, ela, no entanto, disse que não se enquadra em nenhum rótulo sexual imposto pela sociedade, limitando-se a dizer que era livre para gostar de quem quisesse. De fato, todos nós somos, ou deveríamos ser, livres para externar os nossos desejos e sentimentos por quem quer que fosse, mas devido a inúmeros fatores, acabamos nos enclausurando em “armários” para esconder algo que cedo ou tarde será revelado.  Nisso tudo, penso que os artistas, grupo que apresenta uma enorme influência na sociedade, deveriam ser os primeiros a cumprir o seu papel e derrubar os preconceitos que pululam as minorias. Ou seja, se tantas outras celebridades fizessem o que a cantora baiana fez, muitos dos problemas que afligem gays, negros, mulheres, índios, entre outros grupos minoritários, seriam resolvidos.

No entanto, diante de tantas revelações de celebridades nesse sentido, emerge um questionamento: mesmo com toda a liberdade que é vivenciada no mundo artístico, por que é tão difícil para tais personalidades revelarem suas preferencias sexuais? Num plano menor, uma simplista resposta para essa questão reside na heteronormatividade imposta pela nossa sociedade. Nossa educação ainda peca no que se refere a um trabalho voltado para a sexualidade plural do ser humano. Presos às genitálias, pais e mães continuam a educar seus filhos nos moldes do macho e da fêmea, onde o primeiro ainda prevalece sobre o segundo. Por isso que muitos famosos, vítimas desse sistema, não se encorajam ao ponto de confrontar esse modelo de vida, perpetuando através dos seus respectivos trabalhos os estamentos que historicamente enaltecem os héteros e inferiorizam os gays, bissexuais, travestis, transexuais.

Já num plano maior, a mídia não trabalha com a temática LGBT como deveria. Contraditoriamente a isso, os gays são tratados em polos bem distintos: de um lado os afeminados, divertidos e engraçados, caricaturas servindo de palhaços para o grande picadeiro denominado de sociedade. E, do outro, os que estão no armário, enjaulados por um sistema que priva a sexualidade alheia, obrigando-a a ficar trancafiada. Por causa dessa limitação, resvala a ideia errônea da homossexualidade dividida entre o riso e o armário, forçando famosos e não famosos a escolher qual dos lados dessa controversa moeda ele deve se encaixar. Devido a isso, muitos artistas não se sentem a vontade para externar o que de fato sentem, e preferem viver às escondidas. Repressão esta que, durante anos, forçou aqueles que escolheram o estrelato a interpretar o papel heterossocial para serem aceitos.

Se nem os artistas escapam da discriminação, imagina então os anônimos. Estes, infelizmente, ainda lutam para enfrentar uma sociedade que crava marcas indeléveis em cada indivíduo desde o seu nascimento. Aqui no Brasil, por exemplo, desde a tenra idade, aprende-se que ser menino e menina não é apenas uma questão genital, mas de sobrevivência, visto que, aquele que ousar transpor tais fronteiras será duramente penalizado. As penas não têm um amparo legal e podem variar dependendo do “agravamento” exposto por cada indivíduo. Neste sentido, se a pessoa for gay, mas discreta, não afeminado (ou masculinizada), o que no máximo pode ocorrer são algumas piadinhas desonrosas nas ruas, a olhares de soslaios por aqueles mais conservadores. Entretanto, se o homossexual resolver assumir externamente sua condição (com direito a voz afeminada ou máscula demais, roupas extravagantes, penteados modernos, ou quem sabe o transformismo) as penalizações são intensificadas entre ofensas, pancadas ou mesmo a morte desses indivíduos.

Tudo isso acontece porque o grande público se sente desamparado sócio e legalmente por um país que ainda não dá o devido espaço e respeito para os homossexuais. Por essa razão, quando um famoso rompe as barreiras do preconceito, ele não só serve de modelo para outros na mesma situação, mas também de expoente para o enfrentamento das questões que marginalizam aqueles considerados “diferentes”. E para militar não precisa necessariamente ser genuinamente gay. Há pouco tempo, artistas como Caetano Veloso, Dira Paes, Preta Gil e Vagner Moura, uniram-se em prol da expulsão do polêmico parlamentar Marcos Feliciano, conhecido por esbravejar frases degenerativas não só contra os homossexuais, mas também a negros e mulheres. A junção desse grupo é uma arma positiva contra a repressão religiosa de uma nação que se diz laica, porém privilegia ditadores religiosos que belicosamente atacam a homossexualidade, baseado em argumentos arcaicos e indiscutivelmente subjetivos.

Esses aliados não estão expondo suas faces para ganhar notoriedade, algo que é muito comum entre as celebridades instantâneas e sem talento. Pelo contrário, eles lutam por um modelo de sociedade que seja plenamente democrático e não uma releitura dos tempos áureos da ditadura militar. Neste período, muitos famosos que repudiavam a postura política do país sofreram a duras penas o dissabor de enfrentar as imposições vigentes, sendo exilados, presos e até mortos por essa pátria “democrática” onde vivemos. Acontece que hoje a repressão anda velada, desfavorecendo aqueles que não se adequam a normatividade sexual imposta pela cultura do hétero. Sorte nossa que os mesmos artistas que não se calaram em outrora não foram silenciados com o tempo e continuam lutando por um país mais justo e igualitário. Porém, é lamentável saber que muitos outros poderiam militar em favor dessas e de outras causas que atormentam as minorias, mas preferem a omissão, o silêncio, dando vez e voz aos fundamentalistas que apregoam discursos nocivos contra essa sociedade vítima da cegueira da ignorância.

Daniela é só a ponta de um grande e profundo iceberg sobre a sexualidade de muitos artistas, a qual vive submersa nas gélidas águas da intolerância. Ela, Ana Carolina, Adriana Calcanhoto, Marco Nanini, Netinho, Thammy Gretchen, Renato Russo, Rick Martin têm em comum os palcos e a exposição de um modelo sexual inaceitável para a sociedade. Guardadas as devidas proporções sócio temporais de cada um deles, é inegável não perceber o quão importante foi o exemplo dessas e de outras celebridades para a desconstrução dos preconceitos em torno dos gays no Brasil e no mundo. A coragem dessas celebridades merece nossa admiração e respeito, pois fermenta uma discussão salutar numa época onde os embates em torno da liberdade sexual estão vindo à tona e, possivelmente um confronto neoinquisitivo, nesse sentido, irá acontecer entre os que pregam um modelo antagônico de vida e os que lutam por um país revolucionário e melhor para todos. Resta torcer para que outras Danielas continuem a surgir e a semear alegrias agora, agora e amanhã.

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