“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome [...]”. A máxima anterior, versada pela cantora Adriana Calcanhotto, remete a múltiplas interpretações. Neste momento, porém, o foco da discussão não estará nas diversas cores que confrontam o nosso olhar todos os dias, mas na ausência delas, a qual cria uma ambientação de invisibilidade. Explicando melhor, ao andar pelas ruas, estamos diante de grandes telas, cenários e ambientes onde o colorido ofusca o nosso olhar para as cinzentas imagens menores, aquelas que sujam esquinas, pontes, avenidas e pequenos e grandes bairros de inúmeras cidades sem que percebamos. Na verdade, essa inexistência serve de palco para o estrelato da pobreza, em diversos papéis, ora protagonista, ora coadjuvante, mas sempre vista como antagonista social para os olhos de muitos.
As variadas facetas representadas pela pobreza encobrem o arco-íris de vida propagado pela sociedade de consumo, com seus outdoors e letreiros coloridos. Ao passar por diversas ruas, por exemplo, é comum vermos mendigos e pedintes na sua árdua peregrinação ao nada, seres estáticos no tempo, seja por abandono ou por falta de oportunidades sociais, as quais têm levado mais e mais indivíduos a viverem em situação de penúria. Próximo desse grupo, meninos e meninas em sinais de trânsito violentam a nossa vista com seus discursos piedosos e a inegável aparência de mártir, de alguém que sofre por estar em tal situação, muitas vezes inconscientemente. Esses humanos são descoloridos por nós, pois não enxergamos os problemas deles numa talvez inocente tentativa de ceifar o problema e redimensioná-lo para um possível responsável.
Essas pessoas passeiam pelo escuro dos grandes primas da sociedade e nos levam consigo. À noite é a vez da prostituição reinar absoluta e com ela os vícios que mantêm inebriados homens, mulheres e travestis, indivíduos sedentos por atenção, carinho, aceitação e que procuram na clandestinidade a válvula para despojar suas frustrações. Pela janela do quarto, pela janela do carro, como bem enfatiza a cantora, seja por onde for, somos defrontados por eles, oferecendo seus serviços a pessoas também sem cor, sem vida e sem alma, que buscam nesses guetos as respostas para as indagações das quais já sabem as respostas. O que acontece é que somos inevitavelmente guiados pelas nossas excentricidades egoístas e com isso não enxergamos a dor do outro, ou o outro como um de nós, mas sim como objetos descartáveis e, neste caso, seres invisíveis quase etéreos.
Entretanto, esquecemos que todos eles fazem parte do palco negro da pobreza, da miséria, do esquecimento, o qual fabrica atores e atrizes incolores, sem brilho. Esses humanos opacos, porém, protagonizam tudo o que já sabemos, mas não queremos enxergar: que há um grave abismo entre os mais ricos e os mais pobres e que essa cratera, criada pelos primeiros, tem desumanizado a sociedade ao ponto de não encontrar soluções individuais que possam atenuar a desgraça alheia. Pelo contrário, agimos como coadjuvantes esperando que o diretor desse espetáculo de horror, neste caso atribuído geralmente ao governo, tome as suas devidas providências.
De fato, as ações governamentais são crucias para a transformação da sociedade, uma vez que são elas que detêm o poder necessário para equilibrar as finanças do país e fazer uma justa repartição desta. No entanto, em se tratando do Brasil, a população não deve centralizar as esperanças nos nossos políticos, visto que o mar de corrupção que submerge nossa pátria demostra que não somos conscientes o bastante ainda para escolhermos os nossos representantes. Por causa disso, a pobreza deixa o papel de protagonista e se torna vilã, antagonizando os dilemas vividos por diversos grupos, ao passo que externaliza para o restante da sociedade que algo está errado e deve ter uma solução imediata.
Disso resultam os imediatismos, os auxílios e “bolsas” que atuam paliativamente para solucionar feridas de dimensões cirúrgicas. Também é neste momento que as manifestações de intolerância e violência ganham vida, pois sem condições de vivência, os menos favorecidos, econômico e socialmente falando, vão buscar nas transgressões sociais os subsídios para sobreviverem. Então, crianças povoam sinais, mendigos mancham ruas e indivíduos de gêneros diversos prostituem seus corpos, servindo de mercadorias para aliviar a pobreza de pessoas com posses financeiras, mas pobres em outros sentidos. Com isso, a marginalização surge através dos vícios das drogas lícitas e ilícitas, dopando zumbis que apenas necessitam de uma cor, um foco de luz, para se sentirem de novo vivos.
Por causa desse descaso, é neste instante que as cores humanas são enquadradas num espectro de luzes sombrias, as quais descolorem indivíduos como se estes não existissem e com eles os seus problemas. Isto porque é bem mais simples invisibilizar as mazelas alheias do que tomar um posicionamento sobre elas. A sociedade vive nesta passividade doentia, a qual vem construindo seres robotizados, desumanos, sem cor interior e, possivelmente sem alma. Falta para isso, seguir o conselho poético de Adriana Calcanhotto e ver o estar de cada coisa e filtrar seus graus para sensibilizar essa gente que a pobreza, mãe maior da miséria e da fome e parente próximo do esquecimento, não é um problema exclusivo do governo, mas de cada um de nós.
Então, o que fazer? Acredito que o primeiro passo é deixarmos de lado as prosopopeias que criamos, atribuindo vida, de fato, as pessoas que estão vivas, iguais a nós. Independentemente de cor, classe social e orientações sexuais, todos somos uma única espécie e por mais redundante que isso possa parecer não é demais relembrar, já que estamos criando subgrupos ou categorias superiores e inferiores, quando na verdade não há e nunca houve tal distinção. O que há é a pobreza econômica, que atinge boa parte da população, e a humana, que não se compadece com o outro nem tem o mínimo de compaixão com os seus problemas. Assim, ao invés de ver tudo enquadrado, você, eu, nós todos podemos deixar esse remoto controle que limita nossa vista e obscurece as cores vivas de outros humanos e tomar o controle dessa situação para, então, repetir em voz alta outro verso de Adriana Calcanhotto que diz “eu presto muita atenção no que meu irmão ouve [...]” e complementá-lo com as palavras sente e, sobretudo necessita.
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