Pedantismo cultural: entre o erudito e o popular

Ler bons livros, escutar boa música, frequentar bons lugares, assistir grandes espetáculos teatrais, conviver com grupos socialmente aceitáveis, tudo isso, em menor ou maior grau, fazia parte da erudição necessária para que o indivíduo fosse inserido entre as elites privilegiadas. De fato, fazer parte dessa redoma cultural engrandece qualquer pessoa, ofertando possibilidade de ampliação de pensamentos e, consequentemente uma visão mais critica do mundo circundante. Por outro lado, quando se cria este limite, elabora-se instantaneamente uma bifurcação entre o culto e o inculto, de modo que o segundo acaba sendo menorizado por não conter as características necessárias para ser incluído no tão assediado mundo da erudição.

Na atualidade, nesta terra da aceleração tecnológica, dos pensamentos rápidos, das conexões fugidias, das inúmeras redes sociais que estreitam as relações interacionais, a sociedade de certa forma contribui para a inclusão do individuo a indeterminadas esferas sociais. Esta inserção, porém, ocorre de forma controversa, uma vez que as pessoas ainda confundem inclusão com presunção. Numa acepção mais clara, muitos indivíduos, para se sentirem partícipes de algum segmento social, extrapolam nas classificações do que é bom, belo, escutável e inteligível, numa frustrante tentativa de parecerem cultos, inteligentes e mecanicamente conectados com a realidade.

Ouve-se então que ler Paulo Coelho, Augusto Curi, Ágata Christi e outros autores, categorizados como populares é uma perda de tempo, visto que a leitura destes não oferece elementos enriquecedores, na opinião dos mais “eruditos”. Diferentemente de ler as obras clássicas de Machado de Assis, Guimarães Rosa e William Shakespeare, autores estes consagrados nacional e internacionalmente, e, assim, aclamados pelos mais conservadores e propagadores da cultura mais clássica. Ora, independente do legado histórico, poético e social, cada escritor exerce uma função primordial ao criar uma obra, seja ela ficcional ou não, a de reportar para o papel o seu entendimento do mundo interior, para um plano exterior, dentro das perspectivas sócio históricas, das quais eles fazem parte.

Nessa trilha de ignorância, aqui no Brasil, a música sofre com o mesmo estigma. Há uma áurea pernóstica que agrupa os sons aprazíveis aos ouvidos, em detrimento daqueles que causam ruídos, cacofônicos, e de pouco requinte musical. Ouvir Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros, é sinônimo de bom gosto, de refinamento, mesmo que o indivíduo nem saiba o nome das faixas que canta, nem tão pouco o contexto do qual o cantor e a obra foram criados. Apenas disse-se que gosta de fulano, sicrano e beltrano, porque isso perpassa a ideia de uma cultura aceitável. Em contrapartida, cantores mais populares, de gêneros diversos, sofrem para externar a sua musicalidade, muitas vezes tão rica em identidade e erudição do que qualquer outro cantor renomado.

E essa mentalidade não se limita apenas as artes literárias ou musicais. As plásticas, atribuídas nesse momento ao teatro e a televisão, também são criticamente analisadas pelos difusores do bom gosto artístico. Na televisão, por exemplo, determinados programas e canais recebem a alcunha de serem de qualidade, construtivos e de inigualável significância social, enquanto outros recebem adjetivos pormenorizados como incultos, pobres, insignificantes, etc. O Big Brother Brasil, famoso “Reality Show” da rede Globo, geralmente serve de exemplo para esse tipo de abordagem. De fato, é indubitável que este programa peca em inúmeros quesitos, mas, se olhado de um lado menos preconceituoso, percebe-se que os seus participantes representam a plastificação de uma realidade social externa: pessoas consumistas, em busca de fama e dinheiro fácil, praticando sexo com desconhecidos e fazendo parte de uma grande jogatina onde os valores como amizade, respeito e decência passam longe. Tal comportamento não pode ser depreciado, uma vez que há um valor artístico ai: a representação mimética da sociedade, nua, crua e cruel como ela é. Ou seja, fora das telonas os mesmos comportamentos são visíveis em várias pessoas em contextos também variados.

Na realidade, muitas pessoas necessitam sentirem-se membros de grupos eruditamente aceitáveis, já que no mundo atual ter informação é ter poder, mesmo que este conhecimento seja superficial, e às vezes nem exista. É o sentimento de pertencimento, de fazer parte entre os que leem bons livros, escutam boa música, frequentam bons lugares, assistem bons filmes e programas educativos, ou que se vestem classicamente bem. Toda essa maquiagem social acaba criando indivíduos cegos, ignorantes, pedantes e de ideologia duvidosa, uma vez que para eles não há beleza no que está fora, ou distante do considerado correto ou perfeitamente social. Esquecem-se, porém, que além desse território há outros mundos de inestimáveis riquezas, muitas até inexploradas, esperando para serem investigadas, entendidas e respeitosamente compartilhadas.

Essa fronteira entre o truculento e o erudito em parte é criada pelas elites sociais. Os grupos mais abastados costumam criar perfis, ou categorias a serem seguidas para que um determinado integrante faça parte do seu convívio. E essa máscara não se limitou às relações interpessoais. Na internet, por exemplo, os internautas com postagens mais refinadas, com frases profundas, imagens filosóficas, músicas introspectivas e desconhecidas das grandes massas, são automaticamente classificados como de grande inteligência, bom gosto e eruditos. Contudo, muitos destes são só máquinas reprodutivas do pedantismo social que obriga a prática desses comportamentos. Alguns nem sabem por que agem dessa maneira, apenas reproduzem os estamentos que inevitavelmente serão bem vistos pelo senso comum.

Não se mede a inteligência pelos livros lidos, pelos lugares frequentados ou pelos contatos sociais realizados durante a vida. Ser inteligente é muito mais do que isso. É compartilhar o pouco que se sabe com o outrem, sem o ar de pedantismo que acaba inferiorizando os cognitivamente "menos inteligentes". A inteligência humana é também e, sobretudo, um mecanismo de análise do outro em todas as suas acepções. É compreender a essência da vida e tentar fazer com que o cenário dela seja o melhor possível para si e para os demais da nossa espécie. É entender que todo esse mar de pensamentos supérfluos é efêmero e pode ser substituído por outros, dos quais a valorização do humano esteja em primeiro lugar. Em outras palavras, ser inteligente não está diretamente relacionado com erudição ou classicismo, mas com a possibilidade de ampliar o olhar para a vida e guiar aqueles que, por razões diversas, ainda estão cegos ou limitados. Ser inteligente, portanto, é ser generoso, humilde e libertário.

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