Porque eu sou velho...



Eu não sou mais como antes. Na verdade ninguém é. O tempo se encarrega de nos mudar, mas não nos prepara para tal mudança. Lembro-me vagamente da minha tenra idade. Recordo muito pouco do fulgor da minha maioridade e esqueço constantemente da minha idade atual. Esse desconcerto indica alguma coisa, porque eu sou velho...

Meu corpo costumava ser ágil, com movimentos rápidos e precisos. Agora ele anda devagar, calculado, cauteloso e impreciso, contando sempre com a participação alheia para ajudá-lo e auxiliá-lo a fazer até as mais íntimas necessidades humanas. Preciso de amparo, porque eu sou velho...

Minha visão era tão aguçada como a das aves de rapina. Conseguia ver a minha presa a léguas de distância, geralmente moças faceiras a passear pelas praças no fim do dia, enfeitiçando homens astutos como eu com seu charme e simpatia. Porém, já não consigo enxergar grandes nem pequenas presas. O rosto dos meus parentes e amigos também me parece estranho, deformado, como se suas faces tivessem perdido as formas originais. Até as minhas vistas não são mais como eram, porque eu sou velho...

Minha voz também está diferente. Antes, arriscava cantarolar algumas liras. Às vezes Jobim, outras Vinícius, mas sempre o que havia de melhor no meu Brasil. Infelizmente, ela também me deixou e em seu lugar ficou essa voz trêmula, como se fossem trilhos descarrilados, e que só me serve hoje para articular palavras, poucas e confusas palavras. Perdi o direito de me expressar, porque eu sou velho...

Meus cabelos me envaideciam de orgulho. Cheios, lisos e luminosos, eles adornavam minha cabeça e fortaleciam o Sansão que havia em mim. Hoje no seu lugar restou uma límpida careca que de tão lisa é capaz de reluzir o azul do céu. Sinto falta da minha cabeleira robusta, e sem ela fui perdendo as poucas faíscas de vaidade que me restavam. Sem capilar, acabei enfraquecendo, porque eu sou velho...

Minha pele viçosa esbanjava sensualidade. Meus músculos, de tão simétricos que eram, poderiam ser capazes de matar de inveja os modelos parnasianos. Homens se inspiravam neles, mulheres sonhavam em tocá-los, possuí-los. Sempre dizia que Caetano Veloso se inspirou em mim para compor “Menino do Rio”. Não era pretensão de minha parte, mas orgulho da virilidade do meu corpo, mas agora tudo desapareceu e no lugar deles ficou essa pele flácida, dominada pela gravidade e enfeitada de manchas e rugas, porque eu sou velho...

Meus ossos doem, meus dentes não mastigam como antes, dos poucos que restaram. Tenho problemas cardíacos e pulmonares herdados de uma má alimentação, cigarros e bebidas, consumidos deliberadamente durante anos a fil. Tudo isso tem sentenciado a minha existência a implacável morte. Ela que tarda, mas não falha, e no meu caso não haverá margem de erro, porque eu sou velho...

Minha vida, mesmo estando no fim, não foi ruim. Vi lindas coisas. Conheci pessoas queridas que passaram rápidas ou de forma marcante pela minha história. Tenho uma família linda que sempre esteve comigo e nunca pensou em me abandonar. Tive as paixões que quis. Amei e fui amado, quis e fui querido, realizei e fui realizado e posso desfrutar de tudo isso com uma nostálgica alegria, porque eu sou velho...

Minha experiência de vida me garantiu esse presente. O de olhar para trás sem arrependimentos, amarguras ou tristezas. Nada foi errado, nada foi em vão. Tudo tinha que ser como foi e por isso estou aqui para contar tudo, sem vergonha e sem medo. De todas as coisas que vivenciei posso hoje aconselhar os mais novos, mostrar-lhes os melhores caminhos e servir de modelo para eles, porque eu sou velho...

Meus sentidos também mudaram. Mesmo com as deficiências da idade, sou capaz de contemplar coisas bem simples como o dia, o doce orvalho da manhã, o voo dos pássaros. Sentir prazer com o vento no rosto, com a salinidade refrescante da brisa do mar. Tudo isso me comove, chama a minha atenção e me faz bem, mais tão bem que eu mal consigo acreditar que não fui capaz de perceber isso antes, mas isso é porque eu sou velho...

Minha pressa de antes deu lugar ao delicado devagar de hoje. Não corro, caminho. Não avanço, espero. Não ultrapasso, passo. A lentidão do meu caminhar me deixa ver tudo, fazer, captar cada sutileza, cada feição, mesmo que a minha visão tente aos poucos me abandonar. Deixei de ser a lebre para virar a tartaruga. E, com isso, deixei de perder e comecei a ganhar, porque eu sou velho...

Minha velhice me ensinou que o tempo é capaz de tirar muitas coisas de nós: saúde, juventude e até mesmo a vida. Porém, os nossos sonhos permanecem, a vontade de viver intensamente resiste, e o desejo de amar continua mais vivo do que nunca. Posso não ter mais o vigor dos meus vinte e poucos anos, mas continuo com a mesma garra de antes. A minha necessidade de fazer a vida valer a pena ser vivida só aumentou e mesmo que a morte encontre a minha porta, neste dia eu direi a ela que pode esperar um pouco mais, até que meu recado seja plenamente dado, porque eu sou velho...mas ainda estou vivo.

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