Que seja eterno enquanto vivo



A efemeridade da vida é uma das únicas certezas que temos. Ao nascermos, descobrimos que o nosso fim um dia, inevitavelmente chegará. Porém, antes que tal finitude se concretize, muitos aproveitam da melhor forma possível os instantes que a permanência na terra pode proporcionar. Outros, infelizmente, não compreendem o sentido real de estar vivo e acabam perdendo tempo com atitudes e sentimentos nocivos a si mesmos e aos outros que os circundam. Seja como for, nos dois casos há inconscientemente uma relação de lembrança, pois nós, seres humanos, pós-morte contamos com a saudade como instrumento para sermos lembrados por aqueles que deixamos para trás. No entanto, acredito que se lembrar do outro, dizer que ama, que admira, que gosta, não deveria ser proferido no túmulo daquele ente querido que se foi, mas enquanto ele ainda está vivo, pulsante e próximo de nós.

Nas grandes civilizações, talentos inquestionáveis deixaram como legado, dentre tantas coisas, a conquista de impérios e grandes reinos. Legaram também uma filosofia pautada na vida eterna. Ser eterno, nesse sentido, corresponde a ser lembrado e não cair no ostracismo sentenciado pelo tempo. Gregos, Romanos, Astecas, Incas, Maias, Egípcios, Mesopotâmios, dentre os inúmeros povos que existiram na terra, tinham como lema permanecerem vivos na história da humanidade. E esse instinto de sobrevivência pós-morte sedimentou nossa cultura de uma forma que hoje alimentamos lembranças revestidas de saudades daqueles que cumpriram seu ciclo terrestre para bem ou mal. Acontece que até nesse período, as grandes personalidades foram cultuados em vida, coisa que tem se perdido hoje pela efemeridade que a fama exerce naqueles ditos como “famosos”.

Isto porque, por mais que haja, para muitos, uma segunda vida, acredito que reverenciar quem já se foi é uma atitude louvável, porém sádica, pois ela poderia ser muito bem lembrada, querida e adorada enquanto estivesse viva. Explicando melhor, nossa cultura aprendeu a valorizar o outro depois da sua morte, pois enquanto vivo, muitos vivem à sombra do esquecimento, renegados ao relento numa sociedade que apregoa a vida depois que a morte chega. É, por exemplo, o que acontece com muitos artistas que viveram entre a fama e a lama, e só são cultuados por nós no seu túmulo. Grandes nomes dos palcos e das artes em geral, que por diversas razões foram esquecidos em vida, só retornam na memória do povo quando o “fim” chega.  São tantos nomes das nossas artes, entre cantores, atores, apresentadores, etc., que são bem mais queridos hoje e homenageados depois da sua partida, do que quando estavam vivos.

“Chacrinha foi o maior apresentador de todos os tempos”, “Elis Regina foi a maior voz do país”, “Legião Urbana foi a maior banda de rock nacional”, “Paulo Autran foi o grande ator da tele dramaturgia nacional” foi, foi, foi... Talentos a parte, a discussão aqui não está pautada nos predicados destes e de outros que deixaram uma brilhante carreira, mas na importância destes e de muitos outros que se foram enquanto ainda estavam vivos. Infelizmente, não posso afirmar categoricamente se muitos dos nomes citados há pouco sofreram com a injúria do esquecimento, mas acredito que alguns sim, pois é mais fácil lembrar-se do outro quando o fim chega. Hoje críticos se debruçam sobre longos textos elogiosos, enaltecendo a carreira daqueles que a vida, ou a morte, acabou encurtando. Então, porque em vida não valorizamos as pessoas que são importantes, talentosas e que modificam esse mundo para melhor? Por que agimos sadicamente enaltecendo coisas supérfluas e não prestigiamos parentes, amigos e todos aqueles que deveriam merecer a nossa atenção?

Por causa disso, muitos artistas fazem de tudo para permanecerem eternos na lembrança de seu público. O estrelato é um caminho sonhado por muitos deles, mas é cruel na medida em que força aqueles que o buscam a viverem sempre sobre seus holofotes. É por isso que os escândalos na vida dessas pessoas se tornaram trampolim para o sucesso. Vale tudo, de posar nua a transar em lugares públicos. Quando, então, uma pausa é determinada, logo aparece à substituição por outra “celebridade” que assumirá o lugar daquele que se foi. Isso é muito comum hoje nos meios midiáticos. A tv, por exemplo, por ser o celeiro de novos artistas, emblema estes como produtos, com data de validade já previstas. Explicando melhor, para estar no retiro das celebridades do momento não é necessário ser eterno, mas viver aquela célebre frase: “que seja eterno enquanto dure”. E na verdade dura muito pouco, porque a efemeridade da memória social não armazena muito coisa por um longo período.

Se ser lembrado, enquanto artista, já é difícil, imagine então para os milhares de anônimos que perambulam pelas nossas vidas. A sociedade é educada a preparar João e Maria para destinos inquestionáveis e não preparam O João e A Maria para serem, de fato, alguém. Não somos preparados para sermos importantes, mas apenas peças de um quebra-cabeça já montado e com funções preestabelecidas. Nascemos com o estigma que nos obriga a trilhar caminhos determinados: faça isso! Faça aquilo! Não mexa aqui! Isso é perigoso! E não há uma educação ousada que nos permita fazer algo novo, transgressor. Por isso que quando algum gênio aparece, seja de qualquer área, logo é tachado de especial, de super dotado, ou que nasceu numa boa base. As pessoas não entendem, ou não estão acostumadas a isso, porém nós estamos aqui não para sermos mais um, mas um alguém que de fato pode edificar uma base diferenciada na própria vida e na do outrem.

É por isso que a morte é tão dolorosa, porque vemos nela um fim, uma desesperança de tudo o que víamos naquele que se foi. É nessa fúnebre ocasião que as pessoas se derramam em elogios e falsas demonstrações de afeto, pois aprendemos que é na morte que as coisas boas devem ser mencionadas, mesmo que em vida nada daquilo que foi proferido tenha sido verdade. Isto ocorre porque não nos vemos como seres importantes, mas como peças comuns de um jogo, do qual prega a filosofia do “Que seja eterno enquanto vivo”. Portanto, permanecer vivo na lembrança do outro é uma das sensações mais humanas que temos. Quando a morte chega não podemos contê-la nem proibir seu fúnebre trabalho. Só nos resta torcer para que aquele que foi arrebatado pelas suas mãos siga um caminho menos sofrível e, dependendo da fé individual, encontre um lugar, um espaço, um plano, (ou qualquer outra designação dada), melhor, sereno e eterno. E para quem fica, restam apenas às lembranças, logo, antes do fim é bom trilhar um bom caminho para na partida ser verdadeiramente lembrado e cultuado eternamente.

Comentários