Sociedade vendida: primeiro o corpo depois a alma



Durante muitos séculos, a mulher com o corpo intocado era vista como relíquia por entre os homens que buscavam na virgindade dela a honradez necessária para se constituir uma família baseada na decência e na moralidade da época. Os tempos mudaram e com pleno domínio da natalidade, fruto da explosão da liberação sexual, muitas mulheres acham antagônica a ideia de casar-se virgem e lutam por tal liberdade. De fato seria hipocrisia manter certos valores numa realidade tão efêmera como a de hoje. Porém, ser pura, sexualmente falando, vai muito além disso: se tornou sinônimo de fetiche nas mentes de homens ricos e pervertidos que encontram em corpos intactos a válvula para externarlizar os seus desejos mais sombrios. No entanto, fugindo de possíveis moralismos, é importante enxergar a questão por uma ótica social. Isto porque numa sociedade onde o sexo é amplamente coisificado acaba favorecendo o comércio de pessoas dispostas a vender seus atributos físicos por quantias exorbitantes de dinheiro ou por apenas alguns míseros trocados para sobreviver.

A máxima que diz que “com o dinheiro não se compra tudo” está longe de ser apenas um dito popular verossímil. Recentemente, houve a quebra desse paradigma quando o Brasil e o mundo acompanharam estarrecidos a venda da virgindade da catarinense Catarina Migliorini, de 20 anos, que leiloou sua “pureza” para um site australiano. Na ocasião, um Japonês adquiriu tal preciosidade por um valor ínfimo de aproximadamente R$ 1,5 milhão. Enquanto isso, dentro do território nacional, muitas outras garotas de comunidades carentes e indígenas são vendidas, prostituídas por um preço mil vezes inferior ao da catarinense, para o deleite de fornicadores do consumo, os quais não medem esforços para concretizar suas fantasias mais insanas. No entanto, nos dois casos há o que se pode chamar de “etiquetação do ser”, o qual cria pessoas sem vida própria e que se tornam produtos consumíveis, ora por livre espontânea vontade, como no caso de Migliorini, ora por mera imposição econômica, a qual leva muitos a trilhar caminhos escusos em busca de dinheiro, que neste caso, configura-se como uma chance de mudar a triste realidade que se vive.

Percebe-se no caso da brasileira, agora milionária, que o tempo em que o dinheiro comprava só objetos está com os dias contatos. Hoje se vende também hímen, peitos, bundas, nesta sociedade que comercializa o corpo como verdadeiros manequins e se utiliza dele como janela para negociação do erotismo, como se o ato sexual equiparasse com uma ação da bolsa de valores. É por essa razão que o ato da catarinense choca, mas não é tão surpreendente, já que sorrateiramente muitas “virgindades” são ofertadas em mesas de bar, em salas de grandes escritórios, em jogatinas políticas, em salas de bate papo e nos terrenos movediços das redes sociais, dentre tantos outros meios e veículos por onde a satisfação sexual é penhorada para a aquisição de riquezas, tanto para quem dar quanto para quem recebe. Tal atitude é fruto, dentre tantas coisas, de uma sociedade fotoshopada, travestida pela ignorância, hipocrisia e pela miséria, elementos em amálgama capazes de modelar um caráter cirúrgico sobre certas pessoas, encobrindo a sordidez de seus atos.

Por outro lado, compra-se também a inocência de forma abruta, já que no berçário da pobreza há inúmeros meninos e meninas que são prostituídos desde cedo por essa sociedade individual, injusta e desigual. Esta comiserada realidade é vivenciada nas favelas e tantas outras comunidades pobres do país, onde jovens desesperançosos crescem e são inevitavelmente fulminados pelas drogas, violência e pela pobreza extrema, num labirinto que só os levam para caminhos ilícitos comandados pela indomável desigualdade social. Por isso que muitas garotas são impelidas a vender seus corpos, entrando precocemente na vida do sexo, uma vez que não há, muitas vezes, uma perspectiva de vida melhor no ambiente onde vivem, restando apenas o corpo como produto a ser comercializado. Acontece que enquanto algumas ganham milhões pela sua virgindade, como a jovem de Santa Catarina, outras não conseguem vendê-la nem por R$ 20 ou 30 reais e quando conseguem são humilhadas, violentadas, quando não contraem doenças, gravidezes indesejadas ou são, lamentavelmente mortas.

Engana-se, porém, quem pensa que as vendas limitam-se a questão do corpo. Isto porque muito antes de vendê-lo, a sociedade brasileira começou vendendo seu caráter por migalhas ofertadas pelos que detém as rédeas econômicas do país. Feito este que é visível nas compras de votos no período eleitoral, nas jogatinas parlamentares, na corrupção exercida pelos grandes que atinge impiedosamente os pequenos. Neste supermercado, os cidadãos servem de produtos usados e descartados por esta parcela que conhece a carência vivida pela grande massa que compõe o país. Por isso que o abismo entre os que consomem e os que são consumidos parece não ter fim, porque estes últimos se acostumaram com a ideia de serem utilizados como objetos e não conseguem ou não são capazes de sabotar esse sistema de compra. Disso resulta a desconstrução da cidadania, pois quem tem o maior poder de aquisição, consequentemente terá vez e voz de comando sobre esse conglomerado de indivíduos que insiste em ser chamado de sociedade.

Enquanto isso, muitos poderosos, anônimos e notáveis, continuam desvirginando jovens e descorporificando sua existência.  E a vendagem manifesta-se nas pequenas até as grandes ações: nas emboscadas em busca de vingança; na comercialização de órgãos humanos, a revelia de seus donos; no tráfico de mulheres, crianças e de outros animais; no suborno que corrompe guardas de trânsito, policiais, funcionários públicos e políticos corruptos; e em tudo aquilo que o dinheiro possa ser usado como ferramenta de persuasão. É por isso que o ato da sulista não assusta, mas sim evidencia o estado de insensibilidade que chegou a sociedade brasileira e contemporânea. Então, fica fácil compreender o procedimento da Igreja Católica quando na sua história chegou a vender o perdão dos pecados através das indulgências. O que Ela fez não é muito diferente do que é feito hoje pela jovem transgressora, salvo o produto, pois se no passado se comercializava a salvação, agora o “pecado”, a luxúria, e porque não a virgindade, tornaram-se cifras preciosas, verdadeiras relíquias dignas de grandes colecionadores.

A verdade é que a linha tênue entre o humano e o inumano está se tornando imperceptível. Com a personificação da vida, a sociedade tem fabricado réplicas em série de objetos andantes, um verdadeiro “fordismo” moderno. Primeiro o corpo. Depois a personalidade e o caráter. E por fim a alma. O gesto inesperado da catarinense anuncia que cada um desses itens poderá ser vendido, já que a sociedade perdeu o significado da vida e não dá o devido valor a ela. Pelo contrário, vendem-se crianças, órgãos humanos, e até virgindades como se fossem frutas numa quitanda. Por isso é bom destacar que a atitude dessa jovem, que vendeu mundialmente a sua virgindade, pode ser considerada como um fenômeno vanguardista, pois antecipa uma tendência perigosa dos novos costumes sexuais nos próximos séculos. Uma realidade onde liberdade é confundida com libertinagem, desrespeito, contribuindo para a criação de seres/objetos, que não vivem, apenas transitam sem deixar maiores vestígios pela terra. 

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