Violência internalizada


Sempre que leio uma notícia sobre um homem bomba, imagino a coragem que esse indivíduo teve para implodir o próprio corpo para levar a cabo sua ideologia. Não é para qualquer um realizar esse feito. É preciso, antes de tudo, ter coragem e convicção da complexidade desse ato. Por mais controverso e polêmico que ele seja, engana-se quem pensa que não há homens-bomba no Brasil. Infelizmente há. Não me refiro ao indivíduo suicida, falo daqueles que possuem uma violência internalizada, sem ideologia nem causa, a qual é diariamente manifestada, muitas vezes sem razões aparentes. É só a necessidade de bater no outro, de mostrar que é controlador, dominador e superior. Ou seja, diferente daqueles que entregam seu corpo por alguma causa, seja ela nobre ou não, no oriente. Por aqui, nossa brutalidade é pura e simplesmente fruto da ignorância, insensatez e de uma herança histórica que nos legou sementes violentas que germinam até hoje dentro de nós.
Baseado nisso, cometemos atos de violência por qualquer banalidade. Basta que alguém pise no nosso pé para que uma verdadeira fera seja despertada. Não há desculpa que dê jeito, o que resolve mesmo é revidar com outro pisão a altura. No trânsito também nos comportamos com brutalidade. Buzinadas furiosas, palavrões, xingamentos, fazem parte desse circo de horror. Os mais alterados, saem dos seus veículos e resolvem tudo ali na tapa, às vezes até a morte. Quando são abordados pela polícia rodoviária, são grosseiros, recusam-se a cumprir as exigências legais. Os que não possuem veículos particulares recorrem aos ônibus e outros meios públicos de transportes. Neles, passageiros se atritam com motoristas, com cobradores, com os próprios passageiros, geralmente pelas razões mais ínfimas.

Chegando ao trabalho, ao colégio, seja lá qual for o destino, um colega faz um comentário, que é mal interpretado, pronto, já é motivo para se iniciar uma briga. Nesse ringue, nem os chefes, ou superiores, escapam. Basta ser chamada atenção para que uma fagulha de discussão seja acesa e o fogaréu esteja formado. Impacientes, impassíveis e resilientes, muitos de nós deixamos o estresse do dia a dia dominar nossas emoções, despertando uma selvagem violência que poderia ser contornada se fôssemos educados a sermos pacientes e mais tolerantes com o outro e com a vida em si. Além disso, numa sociedade acostumada a bater e não dialogar, o resultado é o crescente índice de violência em diversas capitais, onde geralmente os crimes são cometidos pelos motivos mais insignificantes possíveis.
E engana-se quem pensa que essa avalanche de violência está apenas ligada ao estresse cotidiano. Nos momentos de lazer, em que se imaginavam pairar a paz suprema, eis que surge a violência para negritar aquele que parecia ser um instante de prazer. É muito comum, por exemplo, em shows ou ambientes repletos de pessoas, que a violência internalizada dê seu ar da graça. Basta que alguém derrube um gole de bebida em você, bata na sua mesa ou cadeira, esbarre quando você estiver dançando ou saindo do banheiro. Tudo isso já é motivo de sobra para tirar satisfação com o indivíduo que, desatento, irrompeu a fronteira do outro. “Não olha por onde anda, não?” Diz aquele mais alterado. “Tá cego, meu amigo?”, diz outro com o mesmo tom. Isso, é claro, quando palavrões e empurrões são usados para denotar a indignação daquele que se sentiu violado.

A coisa piora se o indivíduo estiver acompanhado. Se for homem com a sua companheira e um terceiro elemento ousar se direcionar para ela com um olhar, mesmo que não seja maldoso, ou simplesmente esbarrar nela, está feita a confusão. O mesmo acontece ao inverso, quando muitas mulheres saem irradiadas em cima de outras que ousaram invadir seu território, direcionando-se aos seus homens. “Tá olhando o quê?” Essa indagação é comumente usada nestas situações por aqueles que, diante de uma fúria incontrolável, não suportam nem sequer serem encarados. Isso se dá porque o ser humano, como qualquer outro animal, possui aquela ideia territorialista de posse. A mulher é minha; o homem é meu; esse é meu lugar; não invada meu terreno, ou verá as consequências. Com esse discurso extremamente egoísta, muitos acabam incentivando atos de violência que poderiam ser evitados, apenas conversando ou ignorando a existência alheia indesejada.
Se na rua, entre desconhecidos, a selvageria humana encontra terreno fértil, há de se pensar que em casa esse comportamento seja improcedente. Ledo engano. Mesmo entre amigos, conhecidos, familiares e parentes, qualquer bobagem pode acender a chama da violência. Uma fala dita de forma ambígua; um gesto duvidoso; um tom de voz fora do comum; tudo pode ser motivo para que o estresse se transforme em violência e, aqueles que deveríamos amar e respeitar, numa fração de segundos podem se tornar nossos maiores inimigos. Essa sensível propensão à violência é algo compreensível, a priori, em se tratando da realidade brasileira. Vivendo imerso no mar de inúmeras violências mais graves, seja no âmbito cultural, social e, porque não, governamental, o povo é tratado como animal e, esquecendo-se da sua real condição, atacam o seu igual como se isso fosse algo natural, pois se tornou banal, diria até factual, ver a brutal manifestação da bestialidade humana e agir como se isso fosse uma coisa normal.

Incentivando, direta ou indiretamente do outro lado, está à mídia. Promovendo aquele velho, mas certeiro discurso da lei do mais forte, a partir dela, somos ainda mais incentivados a bater, ofender, xingar e até matar aquele que resolve atormentar a nossa paz. Mesmo tentando disseminar a paz, muitas emissoras se contradizem nesse discurso, pois a todo o momento em sua programação a violência é destacada, seja como furo jornalístico, seja como espetáculo no atual modismo do MMA. Passivos, os telespectadores absorvem esses discursos e, muitas vezes inconscientes, repetem o que viram na sua realidade cotidiana. É por isso que assistimos em choque aos casos em que marido bate na mulher, porque ela chegou tarde a casa; na mãe que torturou seu filho porque este é desobediente; no amigo, que após umas cervejas num bar, desconheceu o outro e matou-o sem nenhuma motivação. São esses crimes absurdos, porém bastante corriqueiros, que são fruto dessa violência internalizada, a qual caminha lado a lado das outras violências já conhecidas por todos.
Essa cultura violenta, na qual a tapa substitui o aperto de mão e onde o diálogo é trocado pelas balas, não se pode esperar muita coisa, senão o crescente índice de violência, que avermelha em sangue as matérias jornalísticas. Mesmo sabendo que o trânsito é um caos; que o chefe não é a melhor pessoa do mundo; que pessoas indesejáveis sempre existirão; que a nossa família e amigos nunca serão perfeitos; nos esquecemos de tudo isso nessa sociedade do revanchismo, onde a melhor defesa é sempre o ataque.  Os mais esclarecidos, no entanto, ainda conseguem conter a besta embutida dentro deles, ao ponto de conversar antes de confrontar. Entretanto, num país onde ser esclarecido é lutar contra a violência governamental, a qual simplesmente ignora a existência da população, o resultado é a formação de um povo carente, entre tantas coisas, de educação e, consequentemente, respeito pelo próximo. Enquanto isso, continuamos à mercê dessas brutalidades banais que poderiam ser evitadas se violências maiores, aquelas que assombram nosso país há tempo, fossem resolvidas.

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