Sempre que escuto a expressão “vai tomar no cu” me pergunto o porquê de tamanha afetação. A rigor, a intenção de quem direciona essa frase a alguém consiste em reduzir o alvo a nada. Ou melhor, a merda, visto que este último representa a extensão do ânus, codinome cu, por onde sai tal excremento. Mesmo sendo usado como palavrão, nem sempre quem recebe essa ofensa se sente incomodado. Certa vez ouvi que o problema não é a palavra, mas sim o tom que ela é proferida e a quem se destina. Nesse sentido, sinto que ao mandar alguém tomar no cu, de forma agressiva e por vezes deliberada, estamos perdendo tempo, pois em muitos casos não é uma ação negativista. Se caso fosse tão ruim tomar nessa região do corpo, o Brasil e o mundo não estariam repleto de homens e mulheres dispostos a se entregar ao deleite desse orifício.
Símbolo democrático mundial, o cu é uníssono. Está em toda a humanidade e é vital para a sua existência. Como o homem sempre buscou meios de satisfazer seus prazeres sexuais, muitas vezes transgredindo regras morais, sociais e religiosas, e até reconfigurando a funcionalidade do seu corpo, o cu ganhou outras dimensões e usos. Como é sabido, ele serve, a priori, como veiculo de eliminação dos nossos alimentos, por meio do nosso aparelho digestório. Entretanto, a humanidade atribuiu a ele o status sexual, do qual boa parte dos nossos desejos é concretizada. E por mais que se tenha criado uma cultura de nojo ou repulsa em torno dele, não podemos negar que há muitas vezes nesses discursos um quê de hipocrisia, visto que na cama, tal região é cobiçada como se fosse um manjar dos deuses.
No Brasil, por exemplo, mandar alguém tomar no cu é de uma indecência sem medida. Eu diria até que de uma burrice imensurável. Num país onde as mulheres são glorificadas e tem suas bundas esquartejadas do resto do corpo, parece que aquele palavrão é dito em vão. Principalmente porque por aqui o corpo é corporificado, e por isso reduzido a bunda. Ela é, na realidade, o eufemismo do cu. Não dizemos que ele, o cu, é o símbolo cultural brasileiro (assim como a cerveja, o samba, o carnaval, etc.), porque fomos educados a sermos eufêmicos nesse sentido, e por esta razão, mentirosos. Trocando o cu pela bunda, mantemos essa mentirinha perversa que enaltece o todo e vulgariza a parte. Essa metonímia soa incongruente visto que, no seu íntimo, o brasileiro quer o cu, deseja ele, anseia por descobri-lo, prova-lo, rompe-lo, portanto, num ato de “desfuncionalizar” sua atividade primaria.
Você deve estar se perguntando por que nesse texto eu não fui mais eufêmico utilizando a palavra ânus no lugar de cu. Simples, para naturalizar o que já é natural. Às vezes os eufemismos são interessantes porque suavizam coisas que precisam ser levemente ditas para não macular a integridade do outro. Entretanto, quando se trata do cu em questão, os eufemismos são desnecessários, pois não há agressão em dizer algo que já está inserido na nossa rotina e nosso corpo há tanto tempo. Talvez o problema não esteja na palavra, nem no seu bom ou mau uso, mas na entonação dada a ela. É por isso que outros palavrões, derivados do cu como “vai se fuder”, soam mal, porque são ditos bruscamente em situações onde imperam a violência. Em outros contextos, ditos de outras formas, ele soa tão delicado como receber uma rosa. Também não há problema em se pronunciar cu. O perigo reside quando não cuidamos do nosso e queremos dar pitado no dos outros, como se o nosso fosse imune a algo ou tivesse alguma diferença especial.
E não há pecado ou ojeriza que pormenorize tal ato. Quando o homem ainda era primitivo, ao acasalar-se com outros de sua espécie, não verificava se era homem ou mulher, se havia ânus ou vagina. Ele simplesmente se lançava em cima do outro para saciar suas vontades, independente do orifício que iria ser adentrado. É por isso, também, que a aversão aos homossexuais denota incoerência. Muito antes da ideia da homoafetividade, antes mesmo do racionalismo humano criar forma, nossos antepassados cruzavam-se sem o ostracismo em torno dos papeis de gênero masculinos e femininos. Ou seja, se a sociedade atual, repleta de preconceito contra os gays, tivesse mais um pouquinho de conhecimento, saberia que a prática anal não se limita só aos gays.
Ainda sobre essa questão, o ânus é inferiorizado, por vezes demonizado, por compor as práticas sexuais dos homossexuais masculinos. Em meados de 1980, por exemplo, com a eclosão do vírus da AIDS, os gays foram crucificados pela propagação dessa doença, já que se acreditava que ela era transmissível apenas entre eles. Felizmente, esse pensamento foi sendo modificado com os avanços científicos e culturais da sociedade, uma vez que não é só pelo ânus que se contrai tal enfermidade, mas através de qualquer ato sexual desprotegido e promiscuo. Ou seja, mesmo sendo um dos maiores focos de contagio dessa doença, o cu não é o vilão das doenças sexualmente transmissíveis como se imaginava. O problema residia mais num tabu em torno do uso dessa parte do corpo do que na homossexualidade, pois há quem acredite que ser gay necessariamente tem que dar o cu, quando na verdade, as relações homoafetivas não se resumem a isso.
Toda essa discussão ainda acontece porque existe todo um histórico em torno do cu, entre positivismos e mais negativismos, geralmente relacionados a uma indústria pornográfica, a qual lucra horrores com as nossas limitações. Quando falo de indústria, não e refiro apenas à clássica pornô, responsáveis pelos folhetins e filmes do gênero. Me refiro, sobretudo, a mídia televisiva com suas mulheres turbinadas do pé a cabeça, especialmente na bunda. Nesse sentido, vale pontuar a cultura musical, a qual tem a bunda (leia-se cu) como epicentro de suas rimas, geralmente pobres, impulsionando a sociedade, que se diz “enojada” com o cu, a rebolar até o chão em coreografias que vão da boquinha da garrafa até o quadradinho de oito. Seja como for, nas baladas, esse povo que se diz careta já segurou o “tcham”, talvez dance de cabeça pra baixo nas noitadas ou, em quadro paredes, faz coisas com a bunda que prefiro nem comentar.
Outra, da tantas incoerências vividas pelo cu, ocorreu há pouco tempo por aqui. Diante de uma multidão que assistia ao jogo de abertura da copa do mundo de 2014, a nossa Excelentíssima presidente Dilma foi alvo do berrante verso: “Ei, Dilma, vai tomar no cu!” dito em alto e bom som para o Brasil e o mundo ouvirem. Ora, os torcedores que se acharam espertos ao manda-la tomar no cu, não imaginavam que tal frase saiu pela CUlatra, visto que nessa copa milionária, quem está e vai tomar no cu somos nós, e o pior, sem prazer. Entretanto, guardada as devidas proporções, é importante lembrar que o cu geralmente é utilizado em ambientes esportivos como forma de ferir seu oponente ou porque culturalizou-se que nos campos é palco de pessoas selvagens movidas apenas pela paixão pelo seu time, a qual permite esse tipo de vocabulário. Pode até ser, mas não deixa de ser pejorativo, não por ser um palavrão, mas por guardar em seu íntimo a ignorância de um povo que repudia o cu, mesmo utilizando dele de diversas formas.
Nesse âmbito, ir tomar no cu é ruim pra quem? Isso vai depender de quem está mandando e de quem está recebendo. Há uma relatividade que merece ser pontuada. Baseado nisso, deveria existir um respeito maior para o cu, pois ele representa o único elo que nos une diante de tantas diferenças naturais e impostas que insistem em nos separar. No filme brasileiro Tatuagem, há uma cena que corrobora com a máxima anterior dita, quando em certa parte dos atores cantarolam o seguinte trecho “a única coisa do nos salva, a única coisa que nos une, a única utopia possível é a utopia do cu” e continua “tem cu, tem cu, tem cu...”. Nesses versos satíricos há muito mais do que vulgaridade, para os olhos moralistas dos sórdidos puritanos. Há inúmeras verdades a serem reveladas a partir dessa pequena fenda tão estigmatizada e, ao mesmo tempo, tão desejada.
O cu é utópico porque subverte a normalidade e estagna a procriação da espécie. E nisso ele é altamente positivo, pois contem a inchaço social de um país onde a multidão vive na miséria. O cu é também libertário, visto que mesmo vivendo na clandestinidade, é livre nas transações mais comuns da nossa vida levando prazer aos mais necessitados. É constantemente ofertado como relíquia por muitos e recusado por poucos. Ele é, ainda, a deflagração do um prazer, por muitos pecaminoso, mas que é santificado no gozo reverberado entre os casais. Ele é puro, humano, natural e, por isso, necessário. Vive entre o bem e o mal. Na luz ou no apagar delas nos quartos de motel em nas suítes residenciais. Isso na hora do sexo se decide. O cu é controverso, pois mesmo sujo, é cobiçado. Então, antes de ofender alguém, antes de sentenciar quem quer que seja, é bom se lembrar do dito que diz: “pimenta no cu dos outros é refresco!”, pois só assim lembraremos que antes de tudo, temos algo que nos iguala, o cu. E tanto o seu, quanto o da Dilma, o meu e de quem quer que seja, merecem respeito.
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