A onda de solidariedade virtual, que tem levado centenas de pessoas Brasil e mundo afora a tomar um banho de água gelada, originou-se de um singelo desafio. De fato, não deve ser fácil tomar um banho com uma água em temperatura fora do convencional, principalmente em algumas regiões que não contam com o clima ensolarado do nosso país. Entretanto, diante desse ato se esconde um outro mais perigoso, o desafio. Esta palavra traz em si alguns sinônimos que estão distantes do ser solidário. Desafiar é provocar, acirrar, agredir, com direito até a um antônimo de problema. Por essa razão, vimos e ainda vemos pessoas gravando vídeos na internet ou se expondo na televisão nesse sentido, mas não percebemos que, entre muitos deles, o ajudar o próximo inexiste. O que existe é a autopromoção da dor alheia a partir de um modismo.
Como toda corrente, que circula pelas atuais mídias eletrônicas, a campanha do balde de água fria nasceu para ajudar um ex-atleta americano que sofre de uma doença rara, conhecida como ELA (esclerose lateral amiotrófica). Comovidos com esse caso, várias pessoas ao redor do mundo aderiram se banhando e fazendo doações para encontrar um tratamento, quiçá cura, daquela doença. Ao chegar no Brasil, porém, essa ação ganhou outras dimensões. Por aqui, em meio a um mar de hipócritas exposições midiáticas, pessoas anônimas e famosas também resolveram fazer parte dessa campanha, mas apenas parcialmente. Isto porque, se comparado a outros países do mundo, o nosso foi o que menos doou, porém o que mais se expôs nesse sentido.
Antes de tudo, é preciso entender que tal atitude de alguns brasileiros tem lá suas justificativas. A primeira delas está ligada ao poder que a internet, e as mídias em geral, tem exercido sobre os brasileiros. Numa nação onde as clínicas de tratamento para viciados virtuais abrem novas sedes a cada semana, não é de se surpreender que muitos adentrem em campanhas solidárias apenas por entrar. É, na verdade, a necessidade de pertencimento, de estar num determinado mundo, fazendo coisas aparentemente úteis e, exibindo-as para que amigos, conhecidos ou não, possam ver, curtir e compartilhar. Nessa questão ainda cabe o fator desinformação, que está diretamente ligado a facilidade do povo daqui de se alienar, ao invés de ajudar.
Sem conhecimento de causa nem de mundo, muitos acham, que ao se banhar com água, areia ou barro, vão contribuir de alguma forma com a resolução dos dilemas alheios, quando na verdade a situação exige coisas bem mais amplas. Entretanto, um segundo ponto pode ser utilizado para reforçar esse tema, a falta de solidariedade dos brasileiros para com os brasileiros. É bacana ajudar o ser humano em si, seja ele daqui ou da Índia, por exemplo. No entanto, parece que ser solidário com alguém de fora do nosso território humaniza aqueles que se esquecem de tantos outros seres humanos que, no Brasil, sofrem de coisas tão complexas como a que iniciou essa inocente campanha. Mesmo assim, a solidariedade nacional não enxerga a violência diária da fome, da miséria, do preconceito, da discriminação, e de tantas outras problemáticas que vitimizam centenas de milhares de pessoas.
Não se pode esquecer que tudo isso ganha mais visibilidade quando pessoas visíveis socialmente aderem de alguma forma. As celebridades são as principais entre elas. Por exercerem uma influência enorme sobre a grande massa, artistas diversos também contribuíram para que o balde de água fria fosse popularizado nas redes sociais e na mídia televisiva. Fazendo parte dessa corrente, muitos deles, com muita ou pouca roupa, também se encharcaram por uma boa causa. Evidentemente que nem todos quiseram entrar nessa brincadeira e foram execrados por isso. Não basta doar, tem que participar. Ou seja, não adianta dar uma quantia para essa ou aquela campanha, é preciso ser desafiado, enfrentando o obstáculo das baixas temperaturas.
Quando fazemos uma análise mais aprofundada disso tudo, percebemos que o ato de ser solidário virou uma competição, a qual não traz implícita a mensagem “vamos ver quem faz mais o bem”, mas sim “vamos ver quem ganha mais visibilidade fazendo o bem”. Ou seja, muitos dos indivíduos, anônimos ou notáveis, que pagaram o mico do banho forçado, não estavam preocupados com o rapaz imobilizado do outro lado do continente, mas sim com a dimensão que o vídeo feito daria. Também se deve lembrar do tom de brincadeira disso tudo. Claro que ser solidário é uma ação bacana, divertida, pois visa, antes de tudo, sanar minimamente a dor do outro. Entretanto, a gaiatice de alguns reconfigura a proposta original daquela e de qualquer outra campanha.
É o modismo que faz com que o doar seja apenas um trampolim para a fama instantânea. As pessoas até para ajudar o próximo precisam ser glorificadas midiaticamente por isso, quando na verdade a maior glória é se solidarizar com a dor do outro, com ou sem reconhecimento social. Tamanha verdade disso que se as milhares de ONGs espalhadas pelo Brasil quisessem colher os louros das suas ações com holofotes, não haveria mais nenhuma funcionando. Da mesma forma as pessoas que, sozinhas, fazem de tudo para dar esperança a enfermos, drogados, moradores de rua, e tantos outros desprovidos da dignidade necessária para serem verdadeiros humanos. Se todos esses tivessem essa vaidade atual das correntes virtuais, muitas pessoas não teriam de fato com quem contar.
“Não me desafie!” Essa deveria ser a frase de ordem. Nós não precisamos ser tentados com um desafio para fazer o bem. Para realizar uma ação de reciprocidade é preciso apenas do companheirismo necessário em qualquer ato humanitário. Ser companheiro, nesse sentido, é ver o outrem semelhante com igualdade, ou seja, como humano, e buscar atenuar o sofrimento dele. Mas, não se deve fazer tal coisa esperando reconhecimento, fama ou sucesso. Tem um dito que diz mais ou menos assim: “vamos fazer o bem, sem vem a quem”. Em outras palavras, qualquer pessoa pode ter a iniciativa de ser solidário, mas sem a necessidade de ganhar visibilidade por isso. O bem não deseja ser glorificado, apenas ser perpetuado, para que cada vez mais pessoas façam o mesmo e o mundo se torne um local onde cada vez menos pessoas sofram.
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