Quem já, em algum momento da vida, teve a oportunidade de servir de ouvinte para relatos alheios sabe o quão difícil é digeri-los, ainda mais quando o que se ouve refere-se a questões tidas delicadas como sexo, sexualidade, religião, política, tudo isso junto ou outros temas tão espinhosos quanto. Ficamos durante dias revivendo as memórias do outrem incrédulos com histórias de sofrimento, humilhação, geralmente de total silêncio e resignação e, raras as vezes, de superação. Em nosso mundinho, achamos improvável que um ser humano igual a nós passe por tamanhas privações, seja vivendo dentro de nossa própria casa, na outra esquina, num estado distante ou em outro continente. Essa inconcebível ideia de que há histórias inconversáveis, trancafiadas durante anos de martírio, talvez seja uma estratégia criada sorrateiramente pela sociedade atual, para que determinadas dores não sejam revisitadas.
Entretanto, As Boas Mulheres da China descortinam esse véu e não apenas revisitam os relatos de diversas mulheres de uma China da Revolução Cultural, mas também de pré e pós aquele acontecimento histórico. Ao ler as histórias de provação daquelas mulheres, de infâncias destroçadas por ideologias políticas controversas, relacionamentos abusivos, emudecimento, estupros e todos os dissabores das violências físicas e simbólicas, a primeira impressão é que tais relatos foram colhidos de chinesas de séculos mais longevos, e não dos anos 1960 e 1970 do último milênio. Surpreende-nos também a forma como tais eventos chegaram até a autora, que corajosamente destinou uma parte de sua carreira para catalogar tais narrativas, expondo-as a princípio no rádio em seu programa Palavras na Brisa Noturna. Anonimamente, e aos poucos, centenas de mulheres foram sendo encorajadas por Xinran a contar seus dilemas na rádio, como uma espécie de porta voz daquelas que por anos foram silenciadas por uma cultura machista.
Antes de ser um livro de entrevistas, é um confessionário do qual inúmeras mulheres se compelem em relatar através de cartas as suas histórias que são contadas no programa de rádio de Xinran. Das milhares recebidas, apenas algumas são destinadas ao livro, no geral a autora selecionou as crônicas de horror que mais a surpreenderam. Para quem leu a obra, sabe o quão penoso é seguir adiante. Temos a sensação de que não haverá um relato pior do que o anterior, porém, tristemente somos surpreendidos por outro reconto de penúria ainda mais apavorante. Por isso, não será feito aqui uma síntese do que foi lido, por duas razões: é preciso que as verossimilhanças daquelas histórias sejas vividas com o respeito e profundidade que elas merecem; além disso, nada do que for antecipadamente exposto nessas palavras dará conta do calvário sofrido por aquelas mulheres de uma China agora tão distante de nós.
O pioneirismo desta obra reside justamente em dar outra chance às mulheres daquelas histórias de reencontrarem em suas dores a humanidade usurpada por anos de humilhação. Evidentemente que não é fácil reviver certos traumas. Nisso Xinram foi muito habilidosa, pois não fez de As Boas Mulheres da China uma obra piegas, fincada apenas no sentimentalismo. Por mais que exista uma forte carga emocional, esta não é a protagonista das histórias. Todas as dores relatadas nos tocam não porque estejam a serviço do emocional, mas por retratar verdades inegáveis sobre o olhar daquelas cidadãs que tiveram suas existências físicas e mentais irrevogavelmente devassadas. O protagonismo está nisso, em nos mostrar a monstruosidade das ações humanas, seja por motivações econômicas, políticas ou culturais, que resultam no aniquilamento dos mais fracos e na total supressão da dignidade destes. É a prova de que as lutas das minorias tem uma razão de existir, em todos os cantos do globo.
Num paralelo talvez distante, recordei-me da história das Noivas de Cordeiro, uma comunidade em Minas Gerais composta majoritariamente por mulheres que ficou desconhecida do grande público até 2008, quando o canal GNT fez um documentário bem interessante sobre os dilemas dessas mulheres narrado por Lya Luft. Guardadas as devidas proporções entre ambas, fiquei pensando quantas outras misérias compõem as realidade de mulheres no Brasil e no mundo, as quais ainda desconhecemos, seja porque não foram devidamente registradas pela história, ou se perderam nela, seja pela falta de empatia dos detentores do conhecimento- restrito em sua maioria aos homens, ou a carência de pessoas com a vontade e valentia de Xinran, de ir atrás dessas histórias não contadas, trazendo-nos uma reflexão pontiaguda das vidas secretas de mulheres que podem estar, e estão, passando por algum flagelo semelhante ou pior aos das mulheres da China ainda nos dias de hoje. Fico retesado só de imaginar.
Num paralelo talvez distante, recordei-me da história das Noivas de Cordeiro, uma comunidade em Minas Gerais composta majoritariamente por mulheres que ficou desconhecida do grande público até 2008, quando o canal GNT fez um documentário bem interessante sobre os dilemas dessas mulheres narrado por Lya Luft. Guardadas as devidas proporções entre ambas, fiquei pensando quantas outras misérias compõem as realidade de mulheres no Brasil e no mundo, as quais ainda desconhecemos, seja porque não foram devidamente registradas pela história, ou se perderam nela, seja pela falta de empatia dos detentores do conhecimento- restrito em sua maioria aos homens, ou a carência de pessoas com a vontade e valentia de Xinran, de ir atrás dessas histórias não contadas, trazendo-nos uma reflexão pontiaguda das vidas secretas de mulheres que podem estar, e estão, passando por algum flagelo semelhante ou pior aos das mulheres da China ainda nos dias de hoje. Fico retesado só de imaginar.
As Boas Mulheres da China também reforça a importância de se ouvir as pessoas, adentrar suas cercanias e enveredar suas reentrâncias, por mais doloroso que possa ser para aquele que se desnuda e aquele que ouve. Há um pouco de redenção nisso tudo, mas não o bastante para sarar todas as feridas, até porque muitas delas, como sabemos, são incicatrizáveis. Este é um outro aspecto desta obra, nos dizer que determinados traumas são irremediáveis, mas nem por isso merecem ser abandonados por completo. Ao vasculhar o passado mais obscuro das pessoas vítimas de opressão de inúmeros gêneros, damos a elas o que parece mínimo, porém é mais que o suficiente diante de anos de exclusão e descaso: a chance de contarem a sua versão da história a partir da sua própria óptica, sem as interferências daqueles ditos dominantes. Poder ler em alto e bom som as histórias dessas pessoas sem voz, sem nome, sem família, futuro e tantas outras perspectivas caras aos seres humanos, é um doloroso privilégio. É, sem dúvida, o fio de esperança que faltava para que a vida delas passasse a fazer um pouco de sentido. A nossa também.
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