É MENINO OU MENINA? É UM SER HUMANO!



O que nos define como homem ou mulher? Há tempos as sentenças biológicas XX e XY eram responsáveis por responder essa questão. Hoje, porém, elas são vistas como limitadoras das nossas masculinidades e feminilidades. Por essa razão, falar na possibilidade de mexer nelas causa tanto alvoroço, sobretudo se levarmos em consideração a bifurcação menino-João-azul-carrinho para eles e, para elas, menina-Maria-rosa-boneca, defendida pelos mais conservadores. Entretanto, o mundo caminha em direção ao gênero neutro, focado não em limitar aquele pilar biológico, mas ampliá-lo. Trata-se de repensar todos os valores culturais aprisionados aos gêneros existentes, dando a eles outras experimentações possíveis. No Brasil, contudo, onde tudo parece nos colocar sempre a um passo atrás do resto do mundo, isso será de grande valia, se levarmos em conta tantas perdas geradas pelo nosso atual modelo sócio-econômico-educacional e político, responsável por reduzir humanos às genitálias.

Os que torcem o rosto para essas mudanças têm bons motivos para fazê-lo, afinal de contas, manter a hegemonia vigente é assegurar a permanência dos lucros. Lojas de departamentos de moda, brinquedos, enxoval, por exemplo, faturam muita grana com a categorização dos gêneros que resvalam das genitálias. As cores, os modelos de roupa, cortes de cabelo e demais apetrechos, se tornam elementos indispensáveis aos país ávidos por enquadrar seus filhos num ideal de gênero aceito pela maioria. O que não seria errado, caso o debate de gênero estivesse presente nas discussões familiares desde sempre. Como não é isso que ocorre, sem perceber, muitos de nós, ao naturalizar que menino é assim e menina é assado, estamos contribuindo para a formação de práticas ou possíveis características machistas/homofóbicas/misóginas dessas crianças no futuro.  Além de retirar da infância a curiosidade que lhe é peculiar, ao permitir que garotos brinquem com boneca e garotas de futebol, sem serem repreendidos por essas experiências.

O não enfoque em torno do gênero sufoca todas aquelas masculinidades e feminilidades fora do que é esperado pela sociedade “macho alpha e fêmea gama”. Por exemplo, é bem possível ser um garoto-sensível-meigo-choroso, que usa rosa e seja fã do Liniker, sem precisar ser gay por conta disso. Mas, como falta uma discussão educacional sobre isso, crianças/jovens com esse perfil são hostilizadas na vida escolar, ignoradas por professores-coordenadores-diretores, indo de traumas ao longo da vida ou ao suicídio na adolescência. Ou seja, o tão famigerado bullying poderia ser evitado com práticas educacionais a frente do seu tempo, da mesma forma que a evasão escolar motivada por esse tipo de preconceito. Porém, se a sociedade não é democrática, a escola tão pouco o é. Os Planos Nacionais de Educação retiraram as pautas ligadas a questão de gênero, identidade, sexualidade, até de partes da Lei Mº da Penha, pois políticos religiosos cristãos – sempre eles – disseram que esses temas são desconhecidos da sociedade. E, pelo visto, continuarão sendo, já que a escola, espaço voltado para disseminar as atuais mudanças sociais, é vedada de exercer esta função.

 Mais inflamada fica a discussão quando se traz a público a liberdade familiar/pessoal de criar, ou se autodeclarar, um ser não-binário, agênero, gênero fluido, etc. Definitivamente é o apocalipse na terra. Se já é nebuloso se afirmar de alguma forma na sociedade, imagina então não se enquadrar no que é esperado pelo sistema? Talvez foi isso o que tenha acontecido com o bebê Ariel, quando os pais o batizaram com esse nome afirmando que, ao crescer, ele decidiria se seria menino ou menina. Rapidamente muitos internautas repudiaram a atitude do casal, que depois de várias ameaças, tiveram que retirar a reportagem do ar. A demanda central agora não estava naquela criança, mas na afronta contida no nome Ariel e sua nítida unisexualidade. Em outras palavras, a interferência no batismo da criança fomentou a revolta popular, a qual teria menor proporção se o garoto recebesse os nomes mais esperados para o seu “gênero”. É a linguagem a serviço da discriminação. Felizmente, há mudanças ocorrendo pelo mundo. Na Suécia se adotou o pronome pessoal “hen” para designar a neutralidade entre os gêneros. O Dicionário Oxford adotou desde 2015 o verbete Mx., uma variação para Mr. e Ms., senhor e senhora respectivamente. E o Brasil?

Por aqui a coisa é lenta, mas a nossa genialidade me faz nutrir uma faísca de esperança para o futuro. Isto porque, tenho um amigo, que nos momentos de descontração, criou o pronome pessoal “Êla” para designar aqueles colegas que não se veem dentro do que é e adotado como parâmetro para homem e mulher. Enquanto não há no país uma definição linguística para esta contenda, a internet tem elaborado construções neutras bem interessantes como “amig@s”. Quem sabe elas não sejam acopladas um dia pelo nosso idioma. Até lá, porém, o Brasil precisa avançar em outros quesitos para então pensar em uma nomenclatura oficial para este público. Entre as pendências, falta uma política voltada a igualdade de gênero semelhante ao que já ocorre em muitos países de primeiro mundo. O Fórum Econômico Mundial faz um relatório anual sobre essa temática e Islândia, Finlândia e Noruega ocupam o pódio entre as nações nesse sentido. A nossa pátria aparece numa posição vexatória, cuja menção nem é válida, fruto da ridicularização em torno da “ideologia de gênero”, termo criado por fundamentalistas para banalizar essa discussão.

Ao adiar o necessário debate sobre gênero, estamos tardando a resolução de problemas oriundos dos estereótipos construídos pela sociedade. Da mesma forma, estamos replicando humanos a partir de um único molde. Porém, a unisexualidade não veio para extinguir a espécie. Pelo contrário, sua aparição mostra o quão dinâmico, versátil, é a natureza humana, apesar dos rótulos encarcerarem nossa essência. Significa romper barreiras impostas por vários setores da sociedade e cobrar dos órgãos públicos a plena efetivação dos direitos individuais e coletivos. Diz respeito a planos educacionais mais amplos, humanísticos, antenados as transformações atuais. Pouparia crianças/adolescentes de inúmeros sofrimentos, constrangimentos e demais violências. Ajudaria a entender a sexualidade daqueles que não se identificam com o sexo biológico que nasceram. Como também aliviaria as dúvidas daqueles que têm sua sexualidade questionada apenas por ter comportamentos fora dos padrões. Diminuiria as relações abusivas, a hipersexualização do corpo feminino, a violência doméstica, o ato abortivo, a homofobia, a cultura do estupro, bem como outras violências que nascem da ausência da discussão de gênero. Macho e fêmea continuariam existindo, mas suas masculinidades e feminilidades seriam ampliadas a partir do momento em que alguém perguntasse: é menino ou menina? É um ser humano.

Comentários