Sugerir alternativas para criar uma criança é sempre desafiador. Para mães e pais de primeira viagem, os desafios vão do amadorismo às interferências alheias, sempre dispostas a ofertar as melhores dicas, indicar as melhores rotas, jeitos, profissionais e técnicas para a formação destes pequenos indivíduos. Mais complexo ainda na criação é confrontar a tradicionalidade dos moldes como vem sendo feito, trazendo uma roupagem mais autônoma para todos os envolvidos, sobretudo aqueles recém chegados ao mundo. Porém, ao invés disso, o “sucesso” do modelo antagônico é superestimado por aqueles alheios às mudanças, principalmente quando estas põem em cheque valores vistos como imutáveis pelos mais conservadores. Então, devido a árdua gama de opiniões, entre o embate do velho e do novo, o primeiro ainda sai à frente por ser visto como protótipo perfeito para o que veio se considerando como o ideal para a convivência social. Assim, nossas crianças, antes mesmo de terem o direito de questionar algo, são sentenciadas a esquemas estratificados, que quanto mais demoram a tomar ciência, mais difíceis são de serem modificados.
O curtíssimo manifesto Para Educar Crianças Feministas busca preencher essa lacuna. Mesmo possuindo um título provocativo, a meu ver o livro não pretende fabricar minis feministas, tão pouco se restringir ao universo feminino de forma panfletária. Antes de tudo, é preciso entender que falar de Feminismo é falar sobre pessoas, homens e mulheres, héteros, gays, bissexuais, travestis e transexuais, brancos e negros, pobres e ricos, militantes ou não. Pessoas e suas embrincadas relações sociais. Ou seja, trata-se de uma educação polissêmica capaz de desintegrar o sexismo vigente em nossa sociedade, responsável por afetar especialmente as mulheres, mas também tantas outras minorias existentes. Para isso, a autora dá quinze sugestões preciosas para uma amiga, que está grávida de uma menina, de como criar a sua filha como feminista. Uma tarefa muito complexa, sobretudo na conjuntura atual vivida pelo mundo. Entretanto, Adichie faz um belo apanhado de dicas, de forma clara e direta, oferecendo a amiga, e a nós leitores, uma farta gama de possibilidade para a formação de meninos e meninas.
Mas para que criar crianças feministas? Talvez seja essa a pergunta feita pelos mais reacionários, dispostos a contrapor a importância do livro, ou pior, descontextualizá-lo da sua inegável atualidade. Uma das respostas mais diretas que eu posso oferecer é porque é preciso. É preciso porque a criação desigual entre os sexos tem sido nociva para a construção desses indivíduos ao longo da vida; é preciso porque a questão da descoberta sexual, sexualidade, prazeres e maturação são vistas como tabus, principalmente para elas; é preciso porque incutam nas meninas ainda a ideia de subserviência, delicadeza, inferioridade e desproteção, diferente dos meninos, que desde cedo são educados a estar no controle, serem fortes, superiores e provedores de tudo, inclusive delas; é preciso porque há toda uma indústria que lucra muito com a segregação do gênero, que começa distinguindo a cor que cada criança deve usar na infância e vai até a questão da moda, do mercado de trabalho, política e empoderamento; é preciso porque o momento atual, muito mais que politicamente correto, é de questionar, revisitar certas práticas, as quais por séculos foram vistas como meras condutas biológicas, ressignificando-as aos anseios dos indivíduos modernos.
Apenas por isso já seria suficiente ler Para Educar Crianças Feministas. Porém, mesmo o livro sendo de sugestões para uma amiga da autora prestes a ser mãe na época, serve também de esclarecimento para aquelas e aqueles que não são, ou não serão, mães e pais. Para pessoas que convivem com crianças em casa e se defrontam com situações semelhantes relatadas por Adichie. Serve indubitavelmente para educadores, pedagogos, profissionais estes que em muitas circunstâncias exercem o papel materno/paterno por inúmeras razões. Auxiliaria pediatras, psicólogos e terapeutas infantis a tratar determinados assuntos que possam fugir da capacidade dos responsáveis legais pela criança. Outrossim, é de enorme relevância para a formação de indivíduos mais plurais, desprovidos daqueles preconceitos ancestrais responsáveis por sobrecarregar as mulheres de valores morais imutáveis, ao passo que aos homens sempre foi dada uma liberdade irrefletida, apenas naturalizada por preceitos biológicos, religiosos e morais, todos passíveis de mudanças a curto, médio e longo prazo caso haja um modelo educacional destinado a tais mudanças.
Evidentemente, os contrários aos ideais feministas olharão para este pequeno livro com desconfiança, tratando de desacreditar a pauta exposta pela autora. No Brasil de hoje é bem possível que isso ocorra. Há uma resistência de muitos setores da sociedade em entender o feminismo, legitimá-lo em toda a sua dinâmica, mais ainda em aplicá-lo devidamente na sociedade, sobretudo entre os mais jovens, ou aqueles que mal garantiram o seu lugar entre nós. Para Educar Crianças Feministas vai garantir que haja mais espaço para a aplicabilidade dos preceitos feministas, problematizando as realidades distintas vividas por homens e mulheres de modo que se possa buscar uma igualdade justa para todos os envolvidos. Nada mais sensato do que a infância ser o ponta pé inicial desta discussão. É nessa fase da vida que se edifica as bases que nos manterão inseridos na sociedade. Logo, quando a estrutura é erigida a partir de uma educação sólida, plural, unilateral, focada na transformação dos indivíduos, o resultado disso é uma sociedade menos sexista, onde o machismo e suas reminiscências pouco a pouco vão perdendo espaço.
Eu fiquei muito animado com a iniciativa deste livreto. Confesso que já havia visto algo sobre a autora nas redes sociais e um ou outro trecho de vídeo dela no YouTube tão pequenos quando essa obra. Mas ler sua pauta me fez reforçar algo que já havia de militante dentro de mim, por fazer parte de outra minoria da qual também sofre com os dissabores do sexismo. Suas palavras me incentivaram a reafirmar a luta feminista por uma sociedade onde todos tenham os mesmos direitos, deveres, sonhos, desejos, reconhecimentos, capacidades e oportunidades de ser e existir. Tenho total ciência de que não possuo o lugar de fala das mulheres, as quais são inquestionavelmente as protagonistas dessa pauta por sofrerem mais do que os demais nessa questão do machismo, sexismo, etc. Porém, obras dessa natureza vão além dessa premissa do direito à fala. Trata-se de agregar valor ao buscar alternativas práticas para a resolução de um problema que afeta a todos. É a pura constatação de que apenas a conscientização prematura, neste caso na tenra idade, é o caminho mais eficaz para educar crianças mais plurais enquanto os adultos precisam ser reeducados urgentemente por extensão.
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