Indestrutível é o que nos move.


É indescritível a sensação de estar desencaixado do resto do mundo. Das tantas minorias que partilham desse sentimento, sem dúvidas nós, o público LBGT, somos os que o sente em plena profundidade. Isto porque, desde sempre somos deslocados da sociedade, ignorados por um sistema religioso/cultural/político/social responsável por não encarar nossas demandas com a mesma empatia dos demais grupos sociais. Ao invés disso, somos assediados pela violência LGBTfóbica durante toda a infância e adolescência; nos espaços onde a inclusão, respeito e legitimação deveriam ser os protagonistas: em casa e na escola. Sem direito a pertencer a nenhum lugar, somos violentados deliberadamente, nossas necessidades são negligenciadas, patologizam nosso comportamento como doentio e criminalizam nossa existência. O agravo em meio ao assombro dessa realidade se dá quando nos falta representatividade, deixando-nos mais vulneráveis do que já somos. Felizmente, ícones LGBT’s têm se insurgido contra este panorama, trazendo mais que palavras de conforto, mas a esperança de que é possível mudar esse panorama. Pabllo Vittar é uma dessas representantes.

É inegável o peso de ter uma Drag Queen/Cantora na sociedade aplaudida por milhões de pessoas, muitas delas heterossexuais. Significa um avanço tanto para o cenário musical quanto para a visibilidade LGBT no Brasil. Só em tê-la no palco maquiada, de salto alto, dando pinta, e sendo bem recebida por isso, já seria o bastante. É uma afronta emergencial. Porém, muitos não enxergam politicidade em certos fenômenos culturais facilmente, ainda mais quando os símbolos em destaque foram, e são, marginalizados. Pabllo Vittar, talvez sem ciência disso, estampa claramente a luta de milhões de LGBT’s brasileiros apenas em estar montado no palco. É fato que esta Drag não cantava músicas de cunho explicitamente político, mas sua presença, à revelia de tudo, já é um ato político. Ela é a própria bandeira desse movimento, colorindo o Brasil com uma onda de tolerância nunca antes vista. Como qualquer artista em evidência, a Pabllo foi hostilizada por sua voz, analisada por muitos como feia, desafinada. Quem se agarra a isso de fato não compreende a dimensão de sua existência. Tais critérios se tornam irrelevantes quando analisamos o todo que está em jogo.

Indestrutível, música lançada hoje por ela, é a confirmação daquilo que a Pabllo já vinha fazendo desde o início: militar em prol do público LGBT, mas sem alarde. Deixem os embates desnecessários para os intolerantes e resistentes ao novo. Ela foi minando nossas barreiras com hits dançantes, deixando-nos viciados, ao passo que ignorávamos cada vez mais quem estava por trás daquelas letras: uma DRAG QUEEN! Sorrateiramente, funcionou. O país e o mundo conhecem e estão apaixonados por ela. Agora foi preciso politizar sua carreira. Mostrar para aos mais contumazes que não se trata apenas de mero entretenimento. É militância, denúncia, enfrentamento, sobrevivência, perseverança. O clipe de Indestrutível é um misto disso, ao retratar o bullying homofóbico vivido por milhões de jovens no Brasil, cuja impunidade segue rente até os crimes de motivação de ódio semelhantes, ou piores, aquele cometido contra a transexual Dandara há pouco mais de um ano. Trata-se do fortalecimento de uma geração através da arte, indivíduos tocados pelo discurso de empatia, o qual resvalará na formação de novos cidadãos mais tolerantes.

A música, o clipe, a cantora, marcam história também por trazerem à luz a indiferença à realidade LGBT, a qual não se limita ao bullying. Por eras os costumes sociais, fincados numa visão distorcida de fé, privaram nossos direitos. Nossa forma de amar não encontrava espaço nos grandes romances vendidos pelo mundo. A TV/mídia brasileira tenta há anos representar fidedignamente nossas lutas, mas só consegue nos estereotipar, ora ridicularizando nosso grupo, ora padronizando nosso comportamento. O beijo gay é uma prova da adjetivação dos nossos sentimentos, assim como todas as tentativas cômicas de nos caricaturar para atrair a audiência. O inverso, porém, tardou a acontecer: a politização das nossas lutas, reivindicações simples que se resumiam apenas em uma palavra: respeito. Conseguimos nos casar, adotar crianças, andar nas ruas de mãos dadas, o que já são grandes conquistas. Todavia, falta a naturalização da nossa sexualidade. Carece discutir com mais humanidade sobre essa assunto, sem invocar o divino para intervir em questões de cunho meramente social.

Por isso nos tornamos indestrutíveis. Ao longo da história, inúmeras foram as tentativas de reverter a nossa essência: de exorcismos, a experimentos científicos, passando por práticas de eletrochoque, internações em manicômios e cura gay, todos indiscutivelmente falharam. Fruto dessa tradição medieval, muitos lares infligem maus-tratos aos seus filhos quando descobrem suas preferências distintas da “normalidade”. Sem diálogo, esses jovens são espancados, humilhados. Quando são travestis/transexuais, o público mais vulnerário entre os LGBT’s, o destino é pior: a rua. Nas escolas, uma extensão de todas essas violências irrompe os muros, perpetuando ainda mais preconceitos, seja por meio do bullying, seja pelo despreparo pedagógico de muitas instituições. Tamanha discriminação se ancora na tentativa fracassada de nos corrigir. Tolos! Não é possível reverter a natureza humana. O que somos está alheio a nossa vontade. Caso a mãe natureza nos desse o poder de escolha, muitos optariam pelo tradicional, para se enquadrar naquilo que é visto como “certo”, “natural”, “aceito”. Então, irresolutos, continuamos a resistir a todas essas tentativas de nos destruir, pois o que nos mantêm inabaláveis é certeza de que nada nos diferencia dos demais.

Portanto, que reflitamos sobre a palavra título do novo hino da Pabllo Vittar, Indestrutível. Para mim é a nossa I Will Survive à brasileira. Trata-se de um convite à reflexão, que tanto tarda a ocorrer quando a pauta em foco é a problematização da realidade LGBT no Brasil. O tempo de sermos ignorados (as) já cessou. Vivemos momentos de levante, cuja as palavras preconceito e discriminação cedem lugar a representatividade e empoderamento. São vocábulos grandes do tamanho das nossas lutas. Palavras indestrutíveis como aqueles que as representam. Somos nossa própria bandeira, corpos hasteados por sobre esse Brasil de intolerância que nos fere, física/moral e emocionalmente, testando nossa resiliência. Porém, as marcas indeléveis que trazemos são tão profundas que se tornaram armaduras. Às vezes podem nos enfraquecer, semeando em nós o artifício da dúvida, quando questionamos se somos nós os errados, os pecadores, os devassos, os doentes.  É quando lembramos que fazemos parte do mesmo universo, e desse sentimento de pertença soerguem-se as armas para guerrear contra aqueles que nos oprimem. Nada de violência. Não respondemos com a mesma sanha selvagem dos nossos opressores. O troco é dado com algo mais Indestrutível do que qualquer empenho em nos excluir: o amor. Então, como cantou a Pabllo: “E quanto mais dor eu recebo, mais percebo que sou Indestrutível. Somos! É o que nos move.

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