É de gás que o Brasil precisa.



A paralisação dos caminhoneiros reacendeu chamas adormecidas, mas não apagadas, no Brasil. Em junho de 2013, com as reivindicações em torno dos 20 centavos, as primeiras faíscas foram acesas após anos de gélido silêncio. O povo mostrou o quão incendiário é quando vê seus poucos direitos serem pulverizados por sucessivos governos. Agora, o fogaréu de insatisfação volta a devastar tudo em seu caminho, mas é justamente na destruição que nasce a renovação de que tanto necessita o país. Dessa vez, os caminhoneiros foram os responsáveis em atear fogo com gasolina, literalmente falando, e o resultado é uma nação ciente da validade dos protestos de um lado, e, do outro, hipocritamente calada, usando dos recursos midiáticos para reverter o discurso em pauta para acusar aqueles que são as reais vítimas, o povo.
Como todo fenômeno destrutivo, o fogo assusta porque queima tudo a sua volta. É justamente dessa metáfora que depreende-se a paralisação daqueles trabalhadores. Poucas vezes na história da nação, uma interrupção mexeu com tantos setores sociais ao mesmo tempo. Dessa vez, não foi só o pobre, assalariado, usuário de transporte público e beneficiário do bolsa família que pagou o pato. A classe média regada a Chandon, do panelaço que tirou nossa presidenta Dilma do poder, vê seu discurso arder no fogo do próprio inferno com o aquecimento desenfreado no preço da gasolina e todos as demandas imbuídas nisso. Para escapar das queimaduras visíveis, essa classe finge calada que a fogueira da qual todos estão sendo incinerados não tem relação com o governo golpista que eles próprios colocaram ilegitimamente no poder.
Por falar em governo, o nosso foi tostado em mais essa pausa histórica nacional. Regido por um presidente desacreditado pela maioria, se não por todos, deixou claro nessa parada necessária dos caminhoneiros o quão despreparado é para lidar com os problemas do Brasil. Fruto de uma sanha golpista, gananciosa, gigante como a corrupção brasileira costuma ser conhecida, é incapaz de abrasar as chamas acesas com a mínima habilidade esperada por alguém que rege uma nação. Em suas palavras chamuscadas de incoerências, mais vale recorrer às Forças Armadas do que reconhecer os incontáveis erros que fizeram o clima esquentar desde que foi incongruentemente empossado como representante máximo do país. Porém, é mais fácil acalorar as massas com palavras distorcidas, chamando trabalhadores de vândalos do que admitir publicamente a falta de tino de um governo em lidar com as labaredas que se criaram em torno de uma brasa acesa lá trás.
Desse fogaréu, o povo brasileiro tem sido mais uma vez levado a acreditar que os reais culpados estão nas ruas, parando estradas, causando caos, impedindo o progresso, quando na verdade, quem risca o fósforo são justamente aqueles que conduziram extremamente mal as riquezas nacionais. Então, divididos entre o desespero e a descrença, a população polariza o seu pensamento, levado em boa medida por interferências midiáticas mais voltadas a inflamar a discussão do que em facilitar seu entendimento. Assim, as redes sociais se enchem de retóricas raivosas, argumentos desencontrados, muitas vezes contraditórios, combustível mais que suficiente para a fogueira de emoções em que todos estão sendo torrados. O fato é que, seja qual for a orquestração por trás desses acontecimentos, é inegável o despreparo governamental em lidar com eles, bem como o fracasso daqueles que apoiaram a consolidação desse governo em chegar no poder por puro capricho de uma classe média tendenciosa e mal-intencionada.
Os resultados dessa flama política são sentidos na pele. Caminhoneiros insatisfeitos parados em estradas esperando um acordo minimamente justo para voltar a trabalhar; postos de gasolina superinflacionando os preços dos combustíveis, filas escaldantes de veículos para abastecer o máximo que derem seus meios de locomoção; pessoas estocando alimento, água e outros itens de sobrevivência; repartições públicas e privadas paradas; um verdadeiro estado de sítio não declarado. Todos esses transtornos fazem-nos questionar a validade da paralisação, sobretudo numa nação que está aprendendo a protestar. Entretanto, nem sempre a erupção de certos vulcões adormecidos pode ser vista como ameaça. Isto porque, estamos tão acostumados em, passivamente, evitar certos embates, que quando eles vem à tona, muitos põem em xeque sua autonomia. Todavia, o gás acumulado por tanto descaso e desrespeito com o povo uma hora precisa sair e quando isso ocorre há essa larva de problemas para todos os lados.
Nesse espaço de tempo, a mídia aproveita o fervor de nossas dúvidas para distorcer ainda mais as nossas inquietações, geralmente a favor daqueles que são os reais responsáveis pelo fogo. Numa passada rápida pelos grandes veículos de informação do país, não é difícil encontrar publicações tendenciosas voltadas a ludibriar as massas a culpabilizar quem é vítima e vitimizar quem são os verdadeiros culpados. É um desserviço vergonhoso, oportunista e inescrupuloso, levando à fogueira as problematizações tão necessárias nesse momento de crise. Não educados a se imunizar desse gás lacrimogênio televisivo, muitos de nós se deixa intoxicar por sua retórica e, irrefletidamente, acaba escaldando os dilemas da realidade sem analisar de forma ampla todos os contextos embutidos. É justamente isso que os meios midiáticos nacionais querem: torrar qualquer chance de reflexão que amplie o levante popular contra esse governo já queimado perante o povo.
Não é o que está acontecendo. Felizmente, a paralisação dos caminhoneiros deu gás suficiente para o país, pelo menos, por a prova à política nacional. Mais que isso, tem oportunizado que outros setores caros ao andamento da vida moderna também se organizem contra as negligências governamentais ao longo dos anos. Não dá mais para se silenciar diante de tantos aumentos abusivos, da ganância protagonizada pela nossa famigerada corrupção, ao passo que o povo vê sua dignidade ser cremada em sucessivos governos. Inclusive, é do fogo dessas insatisfações que os rumos das eleições, desse e doutros anos, ganhará novos caminhos. É disso que Temer, e a direita que o pôs no poder, temem: permitir que esse abrasamento populacional ganhe tamanha proporção e chegue a destroná-lo de seu reinado, conquistado através de manobras fraudulentas de uma conjuntura política precária em inúmeros sentidos.
Então, apesar dos transtornos vividos, dá certo orgulho ver o presidente mais mal quisto da história brasileira indo à mídia mostrar sua ineficiência como governante ao acionar os militares para resolver um erro oriundo de sua própria forma errônea de governar. Perceber o quanto o povo tem amadurecido com as sucessivas insurgências, mesmo que haja muita intransigência nos posicionamentos de todos os lados. Porém, perdidos em nossas queixas, queremos uma sociedade melhor, só precisamos aprender a delegar as pessoas certas o poder de melhorar o país. Enquanto isso, vamos queimando nossas exigências em praça pública, porque os sinais de fumaça do passado não foram o bastante. É preciso arde-se coletivamente para que nossas reivindicações ganhem sentido. É de gás que o Brasil precisa agora. Felizmente, temos de sobra.

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