Apesar de muito popular nos discursos de autoajuda, o amor próprio não é uma ação fácil de ser realizada. Por mais que saibamos da importância de nos amar, aceitar quem somos, acreditar em nossas potencialidades, sobretudo para nos blindar dos inevitáveis desafios emocionais da vida, nem sempre nos amamos o suficiente para estarmos plenamente protegidos. Na verdade, isso acontece porque, assim como o mar, o amor tem momentos revoltos e de calmaria, ambos necessários e de extrema beleza. O problema é que nas tempestades da vida, somos arrastados até a arrebentação desse sentimento. Então, atordoados pela correnteza, deixamos que o ódio passe a submergir nossa existência ao ponto de não sermos capazes de respirar, sufocando-nos em amarguras, carências e tristezas. Assim, ao invés de nos amar, permitimos que o odiar guie o leme de nossas vidas, mesmo que haja uma bússola interna repleta de amor, apenas precisando de ajustes para redirecionar tanto sentimento bom acumulado.
Deve ser uma barra encarar o espelho e odiar o reflexo do outro lado. Trata-se de negar aquilo que nos tornamos, por acreditarmos ser insuficiente para aqueles que nos rodeia. É uma terrível cobrança pessoal muitas vezes ligada ao que deveríamos ser, ou ter sido, para sermos melhores, mais aceitos e perfeitos. Analisando estas três instâncias, é fácil encontrar nelas as incoerências pelas quais o ódio poderia ser facilmente dissipado. A primeira diz respeito ao modelo competitivo em que estamos inseridos. É exigido cada vez mais de nós o melhor na vida pessoal, profissional, virtual, social, amorosa, que, perdidos em tantas exigências, muitos de nós não consegue corresponder aos anseios da família, do chefe, do companheiro (a), dos internautas, vizinhos, contribuindo para nos fazer surtar, sobretudo os jovens. Então, incapazes de atender todas essas demandas, vamos desapontando cada uma dessas instâncias. É quando o ódio passa a ganhar espaço à medida em que sufoca seu grande opositor, o amor.
Somado a isso, os agrupamentos sociais tendem a abraçar os indivíduos que comungam dos mesmos discursos, gostos pessoais, características físicas, opiniões, visões de mundo, partículas essas muitas vezes ditadas pela sociedade dominante. Logo, quem não se adequa é invariavelmente excluído de fazer parte dos seletos grupos que se criam. Sem esse pertencimento, alguns indivíduos se perdem dentro de si, isolados em seus sofrimentos, incapazes de interagir com seus pares, sem acesso a diálogo em casa, na escola e na rua. Assim, todo o amor represado dentro de si se transforma paulatinamente em ódio pessoal, pois tais pessoas se culpam por terem sido eliminadas do convívio entre os demais. Todavia, nem sempre ser excluído de determinadas relações é fruto de alguma falha nossa. Significa, na maioria das vezes, que o critério de adesão alheio não corresponde ao muito que temos a oferecer.
Dos três, a obrigação pela perfeição é a mais insana, porém, a que retroalimenta todas as outras ditas até agora. É uma palavra pequena mas de imensa reivindicação. Ser perfeito requer de nós uma escravidão ilimitada que vai da aparência ao êxito profissional e percorre as complexas águas da individualidade humana. Mesmo cientes da impossibilidade da excelência, buscamos a maestria mesmo que o fracasso seja inevitável. Em muitos lares, a comparação com aqueles que nos rodeia só agrava o problema: “você não é tão bom/boa quanto ele (a)”. É uma afirmação dura de ouvir, mais ainda de digerir. Muitas vezes, quando dita por quem amamos, ou nutrimos certos afetos, fica revirando em nossa mente, enfraquecendo as poucas defesas que criamos ao longo da vida. O perigo de frases daquela natureza reside em nos fazer naufragar dentro de nós mesmos invalidando nosso amor próprio, ao passo que o ódio assume o controle.
Geralmente é essa a premissa do ódio próprio: nos fazer crer que no não há terra firme a nossa volta, apenas um mar de incertezas e solidão, e no meio dele há você confrontando-se consigo mesmo. Então, sem ter com que direcionar tanta fúria, acontece o autoataque ao pouco de dignidade que nos restava. Uns se isolam do mundo, por se acharem indignos de pertencer a outros grupos. Outros apresentam rompantes de humor em casa, na escola, apresentando comportamentos ora chamativos ora agressivos. Há os que sucumbem às drogas, à criminalidade, recorrendo aos perigos da ilicitude para encontrar algum significado para suas existências. E, por fim, os fragilizados demais para continuar, entregando-se aos braços sempre abertos da depressão. Os mais desesperados ainda se mutilam, cogitam o suicídio e até chegam a realizá-lo em último caso, pois não conseguem encontrar um sentido naquilo em que veem no espelho. É a morte dando sentido as nossas inexistências.
Entretanto, em todo esse desamor, por mais desesperança que haja, de perto é possível enxergar a profundidade do amor no interior dessas pessoas corroídas por uma ideia deturpada de ódio pessoal. São indivíduos extremamente sensíveis, ávidos para amar intensamente todos a sua volta, mas ignorados pela cada vez mais fluída vida moderna. Pessoas que ouviram repetidas vezes que eram incapazes, imperfeitas, incompletas e inferiores, da boca de entes queridos, amigos, parceiros (as), num momento em que suas resistências já não suportavam mais ignorar tantos insultos. Porque, os elogios que recebemos demoram a vir, mas quando chegam são como águas límpidas refletindo as nossas expectativas. Já as ofensas são ondas revoltas, como tsunamis, destruindo os limites que nos mantinham seguros e deixando um rastro longo de destruição a longo prazo.
Nesse sentido, tão complexo quanto amar é odiar. Apesar de opostos, estes sentimentos costumam nos confrontar nos momentos em que estamos mais fragilizados, quando a vida resolve semear a semente da dúvida naquele terreno pessoal até então infértil. O amor demora a dar frutos, porque precisa de tempo para ser regado. Exige cuidados excessivos, vigilância redobrada e dedicação permanente. Já o ódio facilmente germina em nós, pois a dor serve de fertilizante para que ele cresça, muitas vezes ramificando-se como uma praga em nossa essência. Por essa razão, nos odiamos tão facilmente do que nos amamos, porque direcionamos energias distintas para cada uma dessas sensações. Então, seja negligenciando o amor próprio, seja esperando que este afeto nos seja dado por aqueles que nos rodeiam, passamos a nos depreciar deliberadamente, a ponto de nos ferir, às vezes de forma irreversível.
Em contrapartida, se você está entre aqueles que não se suportam, revisite seu eu e não dê vazão a esse ódio. Ele não te pertence, é apenas um produto destrutivo implantado em sua mente querendo derrotar suas reservas de amor guardadas a setes chaves. Não permita que o ódio as encontre. Isso seria doloroso demais para si e a todos que te rodeiam. Entenda de uma vez por todas que este sentimento conflituoso encontrou morada em você, porque o comando dos seus sentimentos foi usurpado por piratas emocionais acostumados a roubar de nós aquilo que mais falta a eles: amor próprio. Então, assuma o leme da sua vida, acredite nesse tesouro precioso escondido no seu peito e reative a bússola suprema que guia nosso amor, o coração. Se ele bate, há esperança de dias melhores, com águas calmas e cristalinas. Se for o caso, recorra a espiritualidade como válvula de transcendência, busque ajuda psicológica, converse com estranhos, mas não desista de si, não se boicote, não abandone o navio antes de chegar a terra firme.
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