Podem dizer o que quiser do novo clipe do Nego do Borel. Todas as críticas negativas são bem vindas, sobretudo levando em conta o histórico do cantor e o oportunismo do momento em que o vídeo foi lançado. Porém, o título do hit nunca foi tão apropriado. É digno, inclusive, de se tornar tema das próximas paradas LGBT’s pelo Brasil, (fica a dica). Mas, por hora, é de grande serventia para discutir questões delicadas para muitos de nós na sociedade, como representatividade, conquistas das minorias, expressão de gênero e o cinismo por trás de algumas ações ditas inclusivas.
Eu sou um dos que apoiam a necessidade de se representar mais fidedignamente na TV, e nas mídias digitais, a realidade LGBT nas periferias brasileiras, longe desse padrão novelesco cuja apresentação gay se dá em dois polos bem dispares. De um lado, o gay branco, rico, ou de família classe média, masculinizado e de perfil estético aceitável. Enquanto do outro, a caricatura afeminada em torno da homossexualidade. De fato, os dois perfis existem e são válidos, mas não são os únicos. Faltam, sobretudo, outras representações gays que ainda não chegaram às pautas problematizadoras do grande público como se deveria.
Logo, quando um artista se predispõe a quebrar esse tabu é, no mínimo, auspicioso. Denota uma clara mudança de paradigma, ainda mais se partir de alguém que reconheça suas vantagens perante uma sociedade claramente machista. Porém, no caso do Nego do Borel, a patética caracterização de um gay periférico nada mais é do que uma atitude fake oriunda da sordidez da qual passamos a ser vítimas. Não basta ignorar os nossos direitos, é preciso agora se aproveitar deles para ganhar visualizações e ampliar a agenda de shows. Pelo visto, caímos nas graças do capitalismo, mas continuamos a ser motivo de chacota.
Presos a esse modelo de sociedade que nos ridiculariza, buscamos a todo custo maior visibilidade. E conseguimos. Temos hoje grandes artistas assumidamente LGBT’s ganhando cada vez mais espaço, embora ainda haja muita resistência e desinformação do público em lidar com essas novas faces artísticas. Evidentemente que esse ganho não passaria despercebido pelos usurpadores, aqueles que se aproveitam do período para fazer a linha bom samaritano frente ao resto da população. Nego do Borel pelo visto faz parte desse grupo. Seu clipe, confuso e espalhafatoso, mostra a picaretice brasileira em se aproveitar de pautas desconhecidas para engrandecimento pessoal.
Provavelmente, o apoio dado por ele ao presidenciável Jair Bolsonaro esteja por trás da infeliz produção daquele clipe. Não há nada mais político do que se apropriar de plataformas atuais para angariar votos, haja vista que há muitos gays dispostos a votar naquele candidato, mesmo ele tendo demonstrado uma postura claramente homofóbica. Com base nisso, trazer um cantor machão, travestido exageradamente e beijando um cara bonitão em um clipe de funk na periferia, é um artifício infalível para ludibriar a massa. Um belo pretexto para se conseguir mais eleitores para aquele senhor. Felizmente, as nossas dores diárias não nos deixam cair nessas deprimentes tentativas de representação, incapazes de conceituar os dilemas dos quais estamos inseridos.
Na verdade, o clipe apenas mostra o quanto não levamos a sério as expressões de gênero das pessoas. É um desrespeito as travestis, aos transexuais, transformistas, Drag Queen’s, e todos aqueles que, identitário ou artisticamente, incorporam outras facetas possíveis de existir sem necessariamente estar preso as masculinidades e feminilidades previstas pela nossa sociedade conservadora. Mostra também a falta de sensibilidade para com esses indivíduos, que não se encaixam nos moldes pré-definidos, e são muitas vezes punidos severamente por externar para o mundo suas representações pessoais fora do “comum.”
Todavia, de todas essas falhas, o cinismo é, para mim, o mais imperdoável. Veste-se o manto do politicamente correto para sair bem na fita, neste caso, no vídeo. Inescrupulosamente, subestima nossa inteligência uma produção toda construída para criar uma frágil ideia de inclusão, quando na verdade está é dificultando a necessária discussão em torno da realidade LGBT no Brasil. Além, é claro, de incentivar outros artistas, tão sórdidos quanto, a se aproveitar da boa fase de aceitação dos gays para fazer clipes, novelas, séries, filmes, propagandas publicitárias, discursos, toda uma sorte de programação voltada ao mero capricho do consumo e despreocupada com a reeducação social.
Sei que é difícil largar certos costumes impregnados em nossa cultura conservadora. Por essa razão, há tantas práticas preconceituosas ainda naturalizadas pela sociedade, porque aprendemos desde sempre a tratar com desdém determinadas pessoas apenas por elas não se encaixarem no que é visto como padrão. Então, seguimos a levada de preconceituosos que, vez ou outra, se escondem atrás da máscara do politicamente correto para encobrir suas reais faces. Entretanto, uma vez descobertos, precisamos escancarar suas verdadeiras feições, e intenções, para todos, evitando que outros sigam seus exemplos e tentem banalizar os problemas vividos por aqueles que ainda vivem à margem da sociedade.
Por essas razões, é você que tem que nos soltar, Nego do Borel. Você e toda essa sociedade machista/conservadora/homofóbica, que nos aprisiona. Tire suas mãos de nós. Não lhe demos o direito de nos representar dessa maneira tão leviana, tão pouco de nos expor mais do que já estamos expostos. Você não sabe o que é ser hostilizado na rua por fugir do padrão macho alfa e fêmea gama. Desconhece nossas identidades e a dificuldade que temos de construí-las nessa sociedade sexista. Não tem nenhuma autonomia para entoar nosso lugar de fala, quando é muitos vezes a sua classe que nos emudece. Aliás, é justamente o seu favoritismo o responsável por nos tolher o direito de mostrar nossas verdadeiras caras em público.
Essa tolice criada pelo patriarcado de modelar homens e mulheres não nos abandona. Mas, sua imagem pública deveria ser a chave para libertar muitos fãs seus acorrentados pelo machismo do qual você e muitos ainda se beneficiam. No entanto, fazer um clipe travestido de mulher e beijando um boy magia não é o bastante. Era preciso, antes de tudo, ter usado o seu privilégio de ser heterossexual para lutar em prol daqueles que têm suas demonstrações sexuais punidas pela sociedade. Existem boas iniciativas que você poderia ter feito, sem ter que apelar para o ridículo e questionar a nossa sagacidade. Porém, além de você, muitos outros artistas não querem correr o risco de se aliar verdadeiramente às pautas LGBT’s.
É uma pena. Lembraremos de todos eles. E, quando precisarem de nós, diremos categoricamente: Nos soltem!
Quero ver quem vai sair perdendo.
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