O Retrato de Dorian Gray – de Oscar Wilde



Provocar o leitor a pensar a respeito do que se lê é uma árdua tarefa enfrentada por muitos escritores ao longo da história. Em um plano geral, nem sempre certas ideias, por mais inovadoras que sejam, conseguem ser bem efetuadas no papel levando ao outrem uma reflexão acurada, profunda e acessível da gênese do pensamento daquele que escreve. Felizmente, a literatura universal possui alguns gênios responsáveis por ultrapassar esses limites impostos pelo fazer artístico, ao passo que suscita em nós os mais provocativos pensares acerca das nossas incongruentes existências. Nelas, luxúria e castidade, vaidade e moralidade, libertinagem e conservadorismo, compõem as muitas hipocrisias que insistimos em nutrir para viver em sociedade. O Retrato de Dorian Gray não só revisita esses polos, como também desnuda suas incoerências em uma época onde o belo sobrepõe tudo, algo resgatado e deveras enaltecido na atualidade.  

Escrito pelo Irlandês Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray foi publicado pela primeira vez em 1890. Devido ao seu conteúdo considerado como impróprio à época, o livro sofreu diversas sanções para que se adequasse as exigências editoriais antes de ser veiculado ao grande público. Dentre elas, as passagens homoafetivas foram as mais atingidas pela censura do período. Em boa medida isso estava ligado à conduta pessoal do escritor, que viveu abertamente uma relação homossexual que resultou anos depois em sua ruína. Porém, isso não retirou a maestria da obra, que mesmo eufemizada em certas passagens, conservou seu caráter original de enfretamento às incoerências de uma sociedade vitoriana. Ambientada numa Inglaterra do final do século XIX, a obra conta a história de Dorian Gray, que ao ter um quadro pintado a sua semelhança, escraviza sua imagem nele, criando uma representação animalesca de si mesmo.

A escolha do retrato não poderia ser mais pertinente. Não há arte capaz de reter tão fidedignamente a realidade do que as pinturas. Nem mesmo o advento tecnológico consegue tanta verossimilhança que muitos quadros clássicos da humanidade. As pinceladas do pintor captam as silhuetas invisíveis ao mundo real convidando o espectador a (re)olhar com mais minúcia determinados modelos. Assim como um artesão, breves instantes de vida se imortalizam nas mãos ágeis e delicadas de quem é capaz de aprisionar o tempo através das cores. Na obra quem encarna esse papel é o personagem Basil Hallward, o qual, encantado com a beleza do jovem Dorian Gray resolve fazer um quadro deste, cujo trabalho seria o mais importante da sua vida. Tanto empenho surge da imensa beleza emanada pelo rapagão, um verdadeiro Apolo do seu tempo, humanizado entre os meros mortais para deixar claro a mediocridade de suas existências. A princípio constrangido e incomodado com a bajulação de Hallward, Gray mostra-se alheio aos elogiosos comentários do pintor sobre sua beleza.

É quando lorde Henry Wolton entra em cena. Sua participação engrandece o romance. Em boa medida, suas colocações mordazes, seu humor leviano e a contumaz valorização da beleza como suprassumo da juventude corrompem a mente do jovem Gray fazendo-o reencontrar nele mesmo a valorização pessoal através da eternidade de sua aparência. Wolton representa também os anseios do próprio Wilde. É uma clara personificação do escritor frente à filosofia defendida por ele que apenas as coisas belas merecem ser valorizadas. Trata-se do Esteticismo, corrente defendida por Wilde na qual as belezas, por mais efêmeras e frágeis, são as únicas que importam. Tais ideais são sobrecarregados nas falas de Wolton levando-o a influenciar Dorian Gray. Hedonismo, e maledicência criam uma retórica inebriante acerca da relevância extrema que a beleza tem na vida daquele rapaz.

Sendo a juventude vulnerável por excelência, Dorian Gray se deixa levar pela capciosa interferência de Henry Wolton e passa a entender o sentido de sua existência a partir daquilo que há mais de precioso nela: a sua beleza e juventude. No afã da hipervalorização imagética, Basil resolve produzir um retrato do belo rapaz. O resultado final é mágico. Dorian ver-se pintado no auge de suas potencialidades físicas e, hipnotizado pelo que vê – assim como Narciso o fez em seu lago na antiguidade-, sente que suas feições serão deterioradas pelo tempo, enquanto aquele retrato permanecerá idêntico ao momento que foi pintado, guardando para todo o sempre o instante vivaz em que o belo e o novo – o que há de mais precioso para ser louvado, segundo o já mudado Dorian – estarão imaculados naquela imagem. Então, ensandecido pelo triste fim que sua perene existência mortal lhe reserva, ele invoca dentro de sua alma o desejo de permanecer infinitamente como aquele retrato, ao passo que o quadro carregaria as desgraças impostas pelo tempo.  

Ao se condenar a tal moldura, diversas implicações psicológicas emanam na vida de Dorian Gray. Entretanto, é preciso ler a obra para absorver as mudanças sofridas por este personagem susceptível a influências externas, mimado, por vezes irascível, mas tão atemporal. A autoflagelação de Gray irrompe o tempo. Hoje, a busca incessante pela beleza física tem feito com que diversos indivíduos entreguem suas almas, muitas vezes literalmente, para conquistar as definições perfeitas. Não à toa a beleza abra portas, sobretudo se for padronizada a partir do espectro eurocêntrico do qual foi moldada a cultura ocidental. O belo sobrepõe tudo, ultrapassa a emoção e extrapola a razão levando muitos indivíduos aos mais absurdos gestos para adquiri-lo. Tamanha supervalorização saiu das artes plásticas e ganhou notoriedade em outros veículos como o cinema, a mídia televisiva e hoje a internet.

O Retrato de Dorian Gray não apenas questiona a nossa devoção fanática pela perfeição corpórea como desmascara certas atitudes animalescas realizadas por nós para pertencer a tais ideias de beleza; tão fugidios em sua essência. É uma excelente obra. Curta, de linguagem simples, atemporal, provocativa, que nos faz refletir sobre como exaltamos inutilmente a beleza em detrimento de outras potencialidades caras à existência. Leitura imperdível para quem pretende entender os efeitos dos discursos hipnóticos usados por grandes nomes da sociedade para angariar milhares de seguidores ávidos por pertencimento através daquilo que é visto, e aceitável, como belo. Além das implicações reflexivas que inevitavelmente emergirão da obra, O Retrato de Dorian Gray é uma deliciosa leitura, mesclada com doses calculadas de humor, sarcasmos, aforismos, frases de efeito, filosofias, tudo isso sem pesar a mente do leitor com metáforas desnecessárias e por vezes incompreensíveis. O livro é tão belo na linguagem quanto em essência, por isso se imortalizou entre nós e figurará por muito tempo nessa era de Selfie onde o Retrato de Dorian Gray passou a ser digitalizado.

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