"Numa das lendas medievais mais
difundidas do planeta, o rei Arthur consagra-se perante os outros cavaleiros ao
ser capaz de retirar uma espada de uma rocha, transformando-se no rei da
Bretanha. Questões ligadas a honra, virtude e respeito norteiam esta narrativa
literária-histórica, permeada de ritos celtas e interferências cristãs à época.
Fora do mito cavalheiresco, pouco restou de honradez, empatia e respeito no
desvirtuoso reinado de ódio que impera no Brasil. Pelo contrário, hoje os
nossos combatentes são sadicamente ofendidos por um discurso doentio que vem
polarizando o país entre militares e "comunistas".
Sem haver espaço para mediação e
diálogo, assistimos aterrorizados o ataque desumano a morte do pequeno Arthur,
neto do ex-presidente do Brasil, Lula. Ao atacarem covardemente a morte desse
inocente, percebemos, (ou pelo menos deveríamos), entender o agravamento da barbárie
que tem assolado a sociedade. Não há mais espaço para condolências, pêsames, ou
qualquer tentativa de enlutar, se a vítima for do lado "inimigo". Nem
a morte de uma criança cessa a fúria da intolerância. Lembro-me que quando o
atual presidente da república levou uma facada num comício, eu fui um dos
poucos que viu o lado humano daquela situação, mesmo tendo profundas reservas
com o dito cujo.
Isto porque, quando há ações que
acometem o nosso corpo debilitando-nos, é preciso dar uma trégua no embate político
para que aquele indivíduo possa se restabelecer para continuar na luta. Claro,
quando há o mínimo de caráter envolvido na questão. Porém, no país dos dedos
engatilhados em forma de arma caso o adversário esteja desarmado, ferido ou
morto é preciso assegurar a sua derrota com mais crueldade; atitudes que vão
desde comentários animalescos exaltando a brutalidade, a não percepção do quão
selvagem se tornou esta nação. Não nos compadecemos com as dores alheias faz
tempo, mas agora avançamos para algo bem mais atroz: estamos nos regojizando
com as tragédias alheias, que podem ser nossas, e são. É inegável que tamanha
apatia é oriunda das marcas históricas que nos feriram neste Brasil de
violências mil.
Contudo, o revanchismo que tem se
criado, sobretudo dentro das redes sociais, não perdoa mais ninguém. Às vezes
tenho a impressão que muitas pessoas pararam de pensar e vivem vegetando no
universo. São zumbis programados para levar outras pessoas a morte. Qualquer
tentativa de reflexão é mimimi; questionar transformou-se em defesa de
bandidos; problematizar é coisa de comunista; os direitos humanos só servem
para proteger marginais... E nesta neura a espada que poderia ser alçada para
salvar o Brasil do caos iminente vai sendo enfiada cada vez mais goela abaixo.
A hostilidade em torno da morte de Arthur é uma prova disso, mas não se encerra
aí.
Esta na perseguição aos direitos
indígenas; na deturpação da imagem das feministas; no silenciamento e
extermínio dos militantes (vide Jean Wyllys e Marielle Franco); na censura
implantada nas escolas; no impedimento das discussões de gênero e sexualidade;
na exaltação de setores ultraconservadores religiosos em detrimento da
laicidade do país; na manipulação pública através do medo. Tudo isso despertou
o que há de odioso em nós: o desamor. Com a legitimação do atual governo,
veremos mais episódios dantescos ganharem ares de normalidade e muitos
assistirão reticentes a escalada do horror. Eu, todavia, faço parte do lado
oposto.
Enquanto houver discernimento, estarei
no campo de batalha com os outros muitos cavaleiros, erguendo a minha espada em
prol dos meus, que ainda são negligenciados por uma política inegavelmente
omissa. Estarei com Arthur, Marielle e Jean. Mesmo que o fronte de batalha
sofra perdas, outros muitos cavaleiros (e não soldados), sairão em defesa da
quase extinta democracia nacional. Ao nosso Arthur brasileiro, minhas desculpas
em nome da vergonhosa e inescrupulosa mentalidade do país de hoje. Descanse em
paz e emane inocência de onde estiver para abrandar os corações dessa nação
obscurecida de mentiras e falsas promessas. E saiba, Arthur, em sua homenagem,
e de todos que penam para existir nesta pátria, vamos tirar esta espada fincada
no Brasil."
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