O suicídio precisa de cores



       Tive depressão. Não faz muito tempo, mas ainda machuca tocar nessa ferida, embora, da descoberta até a atualidade, houve um longo processo de tratamento e reencontro comigo mesmo para vencer essa doença e impedir o seu agravo. Não é fácil. Ainda carrego profundas marcas da época em vias de cicatrização. Quem tem/teve momentos assim sabe da luta diária travada consigo para seguir em frente. Parece que o mundo perde as tonalidades vívidas que dão sentido a existência. Digo isto porque, revirando o meu transcurso depressivo, lembro como a ausência de cores em coisas básicas do meu cotidiano afetaram outros sentidos meus como o paladar, o olfato e o tato. Sem o colorido ávido capaz de atribuir vida ao que me cercava, comecei a sucumbir a escuridão lentamente até chegar a um ponto crítico do qual o breu surgia como único refúgio para a dor que sentia. E por que estou falando de cores nesse contexto? Justamente porque no mês do Setembro Amarelo, apesar de compreender a função deste tom para a discussão sobre suicídio/depressão, acredito que há outras pigmentações tão caras a essa problemática, que precisam ser destacadas.
        Para validar essa tese, recorro a algo pouco difundido entre o grande público. Trata-se da psicologia das cores, estudo voltado a mostrar como o nosso cérebro identifica e transforma os tons a nossa volta em sensações. O marketing já usa desse artifício há anos para angariar novos clientes, mas pode ser estendida também para a maneira como gostaríamos de ser vistos e compreendidos pela sociedade. Nesse sentido, as cores não servem meramente para o adorno do olhar. Cada uma exerce uma força quando captada pelas lentes humanas. O problema é que no prisma refletido pela sociedade contemporânea, há uma pintura única, traçada no geral pelos socialmente privilegiados, para delinear a existência de todos. Trocando em miúdos, nos é vendido um quadro de vida do qual o molde pode ser ajustado para todos os indivíduos, como se possuíssemos uma capacidade furta-cor de nos adequar a realidade do outro, ao passo que anulamos a nossa. Alguns conseguem tal adaptabilidade, pagando um alto preço por isso, porém, outros muitos destoam, e daí o suicídio muitas vezes entra em cena.
          Em outras palavras, o suicida é alguém desencaixado dos parâmetros sociais. Ele é sensível ao captar a insuficiência da matiz ofertada pelo social, depois sofre ao perceber que não se encaixa naquela aquarela aparentemente perfeita, grita em silêncio por socorro, observa que ninguém se importa com isso e, por fim, chama atenção para si através do apagamento da própria existência. Seguindo esse raciocínio, é espantoso o crescimento do autocídio, sobretudo entre os mais jovens. Dentre muitas razões, nossa juventude não está sendo vista, incluída em sua multiplicidade e, sobretudo, acolhida. Sem referenciais para se apoiar, a depressão ofusca possíveis rotas de fuga, levando-os ao trágico desfecho pela morte. Não à toa, entre os muitos sinais daqueles que pretendem dar cabo da própria vida, está o uso de vestimentas escuras, como um prelúdio daquilo que estar por vir. Ou seja, o verde conhecido como símbolo da juventude, por designar vitalidade, saúde e esperança, perde sua conotação de segurança e dá lugar ao preto da melancolia e da morbidez.
        Entendo como essa substituição se dá. No auge da minha crise, sentia uma paz quando estava na escuridão do meu quarto trancado, ausente da pieguice alheia - inútil por excelência – longe dos ruídos externos que muito diziam, mas eram incapazes de tocar meu íntimo, e protegido do contato humano. Para ser resgatado desse limbo foram meses de insistência daqueles que me amam, todos não apenas preocupados com o meu bem-estar, mas com o desaparecimento do brilho nítido que havia nos meus olhos – que de verdes ficaram foscos diante do que passei. Sorte não ter chegado ao ponto do obscurantismo total, porque tinha estas pessoas ao redor dizendo que havia um arco-íris à minha espera. Porém, ter gente disposta a colorir o meu caminhar é um privilégio de poucos. Muitos em situações semelhantes ou piores que a minha nem sequer são percebidos por aqueles que dizem nutrir algum sentimento. Talvez seja essa negligência uma das principais responsáveis pelo desaparecimento das cores que equilibrariam os desajustes daqueles com depressão.
          Sabiamente, todavia, o amarelo escolhido para tingir o mês de Setembro é eficaz no que se propõe, pois problematiza a necessidade de olharmos atentamente para aqueles que nos rodeiam. Isto porque, em uma era onde o eu é autossuficiente, não há espaço para os dilemas do outro. Então, evocamos essa cor de alerta, da luz, da euforia, mas também do otimismo, para reverter esse quadro egocêntrico, na tentativa de salvar quem tanto precisa da nossa ajuda. Tem funcionado. Após algumas edições dessa campanha anual, mais pessoas se mostram receptivas a discussão e, mais que isso, aptas a dispor de tempo para observar e acolher aqueles susceptíveis a depressão e suicídio. Contudo, sobrecarregar a cor amarela, concentrando-a em um único mês, é pouco diante da complexidade do assunto. É preciso neutralizar as chances de tais doenças acometerem ainda mais a sociedade. A maneira que encontrei, e quem tem funcionado muito, é potencializar o sentido das cores: tranquilizar-me com o azul, espiritualizar-me com o lilás, alegrar-me com o laranja, reavivar o verde da esperança, estar vermelho de paixão pela vida e em paz comigo mesmo.
       Não cheguei a essa conclusão sozinho. Além dos muitos que me cercam, ser acompanhado por psicólogo e depois por analista, a qual faço até hoje, e recomendo – foram cruciais para reaprender a olhar o mundo. É um ciclo que pode variar de pessoa para pessoa. O que quero dizer aqui é que as cores, e não apenas o amarelo, poderiam ser grandes aliadas no combate e cura daqueles, que como eu, sofrem/sofreram de depressão, impedindo a opção do suicídio. Dessa forma, reiterando a psicologia, cores podem ser uteis por compreender nossos anseios, salvando-nos de longos sofrimentos e fins abruptos. Cores são indivíduos atentos aos sinais mais singelos do outro pedindo socorro. Pessoas ternas como o tom de rosa que tanto romantiza as nossas relações, levando a compreensão através da delicadeza do olhar, sempre visando não apenas afagar, mas, principalmente ouvir e entender as dores do outro. Cores também são possibilidades. É a metáfora do pote de ouro no fim do arco-íris. Significa mostrar para quem está nessa condição de vazio profundo que há um mundo colorido debaixo daquela escuridão imposta pelos nossos medos.
        Passados três anos após a descoberta da minha depressão, aceitação do diagnóstico – que também não é fácil – tratamento e processo de cura, estou reencontrando as cores a minha volta, todas ainda mais brilhantes e vivas do que antes. Mais que isso, passei a iluminar a vida daqueles cuja a escuridão da depressão tenta fisgá-los. Tornei-me uma cor, é isso que precisamos também para evitar que o amarelo seja a única encarregada de chamar atenção sobre esse assunto. Parece complexo por em prática essa sinestesia, porém, o fato é que já irradiamos isso sem notar quando não julgamos os depressivos, não o condenamos ao inferno, ou, simplesmente quando estamos dispostos a ouvi-los e compreendê-los, ao passo que mostramos que há naquela dor toda dentro dele uma paleta de cores apenas revirada, mas que pode ser reorganizada. Se o depressivo/suicida, descolorido pelo mundo, notar que o mundo passou a nota-lo, incluí-lo, respeitá-lo como é, suas cores voltarão junto com a sua vontade de existir, pois o suicídio precisa de cores para viver.

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