Guardado a sete chaves


Certa vez, um amigo me telefonou dizendo que queria conversar algo comigo. Curioso, perguntei prontamente do que se tratava. Ele, no entanto, limitou-se a dizer que era algo muito sério e que só poderia me contar pessoalmente. Fiquei superaflito e imaginei zilhões de coisas. Será que ele está com uma doença terminal? Será que cometeu algum crime e agora quer se confessar? Será que ele é gay e resolveu sair do armário? E as perguntas continuavam a brotar da minha mente, ao passo que eu esperava o grande dia da revelação do meu amigo.

Sua ligação foi numa segunda pela tarde, mas o nosso encontro só aconteceria no sábado de manhã, pois nem eu nem ele tínhamos tempo para nos ver antes disso. Fui trabalhar e a ligação dele ficava martelando na minha cabeça. Comentei com alguns amigos em comum para saber se eles poderiam adiantar o teor da conversa. Nada. Ninguém sabia o porquê da repentina ligação. Outros, porém, arriscaram alguns palpites, mas todos semelhantes aos meus.

Acho que qualquer mortal fica agoniado com a possibilidade de saber de um segredo. Quando alguém diz: “Eu preciso falar algo com você” é como se estivesse ligando o botão da curiosidade existente em cada um de nós.  Depois de acionado, esse mecanismo nos atormenta até que seja revelado o tal segredo. E comigo não foi diferente. Passei a semana toda sem dormir direito. No trabalho, fiquei várias vezes disperso, imaginando o que ele tinha para me contar. Em casa, minha família percebeu a minha inquietação e começou a perguntar a razão da minha ansiedade. Respondia vagamente que estava bem. Mas não estava.

Ansiosamente incontrolável, o desejo de desvendar o papo que só teríamos no sábado me levou a procurar meu amigo antes da data. Liguei para o telefone dele e nada. Apenas a chata caixa postal e a sua entediada mensagem. Sem pensar em desistir, fui até a casa dele a noite pós o trabalho. Não era tão longe, apenas algumas quadras da minha casa. A cada passo, podia sentir o meu coração bater em compasso com meus pés. Me aproximo da casa dele e bato a porta. Bato uma, duas, três vezes, e ninguém responde. Bato com mais força, tão forte que uma vizinha assustada aparece e diz que não há ninguém na casa.

Frustrado, mas ainda curioso, fiquei me perguntando aonde teria ido parar meu amigo. Ele não tinha hábitos inusitados. Pelo contrário, costumava ir de casa para o trabalho e não era do seu feitio não atender o telefone e não está em casa aquela hora. Então, perguntei à vizinha se ela tinha notícias do paradeiro dele. Desconfiada, ela perguntou quem eu era. Respondi que era amigo dele e me apresentei para a senhora. Após isso, ela resumiu-se a dizer que meu amigo tinha entrado num estranho carro pela manhã e ainda não tinha voltado. Indaguei se ele estava acompanhado. Ele disse que não viu ninguém, apenas o carro de portas abertas e meu amigo entrando nele.

Ao sair de lá, pensei com mais calma e disse para mim mesmo que não era nada de mais. Talvez uma nova namorada que foi buscá-lo em casa para sair. Talvez um homem importante para um jantar de negócio. E fiquei fazendo especulações para enganar a minha mente e desviar a minha curiosidade sobre tudo isso. Tentei também de todas as formas diminuir a minha ansiedade. Estava muito tenso com a possibilidade de saber algo inusitado sobre o meu amigo. Não que eu fosse fofoqueiro. Longe disso. Pouco me importa a vida alheia e os seus segredos guardados a sete chaves, porém, desde quando recebi aquela ligação, percebi que faço parte do grupo das pessoas que, se não são curiosas, tem todo o aparato para ser.

E passou a quarta, a quinta. Quando chegou a sexta feira a noite, a minha curiosidade estava no limite. Não aguentava mais. Contava as horas para que o dia amanhecesse e eu pudesse enfim ouvir da boca do meu amigo a bombástica revelação que tinha para me fazer. Para minimizar a minha agonia, tomei suco de laranja com calmante para dormir bem. Pelo menos essa noite eu tinha que dormir direito, já que nas outras eu embolava pela cama de curiosidade. Até porque não podia causar uma má impressão ao meu amigo, depois de tanto tempo sem vê-lo.

Chega o grande dia. Mal consigo comer direito. Quando estava trocando de roupa meu telefone toca. Ao olhar para o telefone, reconheci o número. Era meu amigo ligando. Com o coração aceleradíssimo, atendi o aparelho. Do outro lado ele me diz que está me aguardando em casa para me revelar algo muito importante. Coisa de vida ou morte. Já meio sem pensar, disse-lhe que estava a caminho e que chegaria à sua residência num piscar de olhos. Rapidamente me vesti e caminhei a passos largos em direção à casa do meu amigo. Chego na quadra onde ele mora, depois na rua, depois no quintal dele, depois finalmente na porta. Bato pausadamente a residência que em dias anteriores estive lá para matar a minha curiosidade.

Do outro lado da porta, escuto vozes alegres e passos vindo na direção da porta. Meio sem entender o motivo de tanta alegria, fico prostrado lá esperando que alguém me receba. Quem aparece na porta não é meu amigo. É um senhor, bem vestido e de aparência distinta que me cumprimenta e pede para que eu entre. Não era alguém do nosso hall de amizades e fico desconfiado da sua presença ali. Na sala do meu amigo, outra figura que eu também nunca vi. Uma senhora com as mesmas características do homem que abriu a porta. Com uma pequena exceção para as plásticas andrógenas no seu rosto. Ao seu lado estava enfim meu amigo com um ar semelhante ao de sempre. Não tinha preocupação no seu rosto, nem nenhum que de mistério. Apenas o meu bom e velho amigo.

Sem muita demora, perguntei o que ele tanto tinha para me contar de especial que mereceria um encontro no sábado pela manhã. Antes de me responder, meu amigo olhou para o casal presente e fez sinal para que se pronunciassem. Ambos, com sorrisos calmos e uma serenidade fora do comum, disseram que estavam ali por minha causa. De imediato, me assustei com a revelação. O que aqueles dois poderiam querer comigo? Ainda sem entender, perguntei do que se tratava. Eles se entreolharam e disseram que o segredo do qual o meu amigo iria revelar mudaria minha vida. A cada palavra e olhar a minha curiosidade aumentava. Rispidamente, pedi para que acabassem com a minha angústia.

Meu amigo então levantou, caminhou até a minha direção e disse a seguinte frase: “segue o teu caminho”, e apontou para o casal. Confuso, senti uma grande energia vinda daqueles dois. Não sei bem o que era nem como explicar, mas trazia consigo uma paz incomensurável. De repente, meu amigo deu as mãos aos visitantes e se desfez num luminescente clarão. Fiquei prostrado sem entender tudo aquilo. Será que ele queria me dar um aviso? Qual? Será que tudo aquilo foi real? Pouco importa agora. Também pensei em contar para alguém, mas quem? Quem acreditaria nisso? Prefiro guardar mais esse segredo a sete chaves até chegar a minha hora. Quem sabe no fim de tudo eu possa repassar o que vi para alguém.

Anos depois do ocorrido, eu já mais velho, contava essa história acrescentando outros detalhes, reais e imaginários, para enriquecer à narrativa. Meus netos adoravam e sempre me perguntavam se eu tinha revisto o meu amigo depois disso. Respondia-lhes que não, mas que um dia iria revê-lo com certeza. Numa bela tarde de outono, quando as folhas seguem a inércia e forram o chão das ruas, um casal aparece na minha porta. Ao vê-los, reconheço prontamente de quem se tratava. Um deles era o meu amigo. Ele então me diz que é chegada a hora e me pede para ligar para a pessoa mais especial da minha vida e dizer a ela que tem um segredo para contar-lhe. Emocionado, sem medo, nem agonia, obedeço e faço a ligação. E o segredo da vida continuou eternamente guardado.

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