Vamos imaginar a seguinte situação, muito comum em várias partes do Brasil. Uma moça, sem nenhum ligação com a prostituição, resolve sair de casa vestida com trajes mais leves. Uma blusa mais ousada, mais um short, sandália de dedo e uma bolsa. Ai, ao passar pela rua, alguém se sente no direito de atacá-la, de despi-la, de usufruir do seu corpo, apenas porque seus trajes eram “convidativos”. Disto é que são vítimas muitas meninas país afora. Nossa cultura patriarcal e indiscutivelmente machista propaga a ideia de que elas devem ser recatadas no quesito roupa, pois ao transgredir essa regra a penitência é ser estupradas, verbal ou fisicamente na rua, ou olhadas de soslaio por homens e mulheres que agregam valor ao ser humano, a partir de sua aparência.
Após a liberação sexual feminina, esperava-se que a sociedade se encaminhasse para rotas longe desses ditames, que inferiorizavam as mulheres no passado. Elas que conquistaram arduamente o direito de usar anticoncepcionais, de votar e de serem eleitas, mas, na atualidade, ainda sofrem com o estigma das vestes. Se antes a polêmica era em torno do biquíni, da minissaia, hoje tais peças não incomodam os presentes. Porém, outras indumentárias mais decotadas, ou com um que de sensualidade, denotam a vulgaridade existente na pessoa que as usam, alçando-as ao patamar de presas fáceis nessa sociedade onde ser mulher significa alvo fácil na mira dos caçadores; muitos deles homens. Sem contar os moralistas, que se apoiam no exterior do ser humano feminino para rotula-lo erroneamente, a partir da roupa que se usa.
E para quem duvida, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou há poucos dias um estudo dizendo que 65,1% dos brasileiros acreditam piamente que uma mulher vestida com roupas curtas “merece ser estuprada”. A palavra merecimento é muito perigosa nesse contexto, pois dá ideia de que elas conquistaram o direito de serem violadas, sem defesa nem questionamentos, visto que estão trajadas de uma forma que desatina as normas sociais. A meritocracia, defendida por alguns, coloca mais uma vez as mulheres na antagônica posição do “sexo frágil”, aquele que deve se calar diante do “sexo forte”, de seguir seus preceitos, ou apenas servir aos desejos dos homens, seres superiores em tudo, inclusive no sexo. Este último quesito é um dos principais tabus enfrentados por elas na sociedade. Educadas a não sentirem nem terem prazer, as mulheres nascem, crescem e se reproduzem mecanicamente na sociedade sob a sombra dos homens, já que a elas foi facultado apenas servir, sobretudo na cama. Ou seja, fugir disso é ser chamada de vadia, e derivados do gênero.
Esse levantamento traz à tona também outra questão: a persistente perseguição da sociedade contra a mulher. Se antes elas eram bruxas, queimadas na fogueira, agora a penalidade é o estupro. Tal violação, segundo a maioria que opinou na pesquisa do IPEA, é algo natural, visto que muitas procuram ser agredidas nas ruas. Estes indivíduos parecem que não tem uma noção plena do que é ser estuprado. Vítimas dessa atrocidade relatam ser uma das piores experiências em vida que um ser humano pode passar. Ter alguém rasgando sua roupa, penetrando seu corpo, posse esta que ocorre de forma selvagem, pois quem é adepto dessa prática pouco se importa com a vítima, apenas quer saciar sua vontade, não importando a que preço. Mais preocupante ainda é saber que entre os defensores desse horror estão muitas mulheres. Na realidade, isso só evidencia o grau do machismo operante no país, do qual nem elas estão imunes.
Vale ressaltar, nesse sentido, o moralismo hipócrita de que se valem alguns para defender a tese de que mulher vestida sensualmente deve ser estuprada. Muitas vezes, os indivíduos que se sustentam em ditames tão rasos como esses, o fazem por puro recalque. Não se pode classificar alguém de vadia baseado só na roupa que ela usa. Há tantas pessoas por ai que se vestem de paletó e gravata e roubam, matam, cometem atrocidades mil, sem precisar tirar nenhuma peça do corpo. Há aqueles e aquelas que, trajados do pé a cabeça, são bem mais promíscuos do que aquele rapaz sarado que se mostra na praia ou da garota que se exibe na rua com trajes minúsculos. Logo, se ancorar no externo para desvendar o interno de uma dada pessoa é uma tática perigosa e passível de erro, uma vez que, muitas vezes nem tudo o que parece é.
Aos moralistas, ainda, cabe outras colocações. Exigir que nossas garotas andem com roupas mais compostas não vai resolver a promiscuidade feminina, nem tão pouco masculina. Nossos jovens precisam é de um trabalho voltado para a sexualidade humana em toda a sua pluralidade. Se, desde cedo, eles fossem ensinados a respeitar os gêneros opostos, talvez essa soberania masculina não existisse. Talvez o ser mulher não fosse subjulgado por coisas tão supérfluas. Entretanto, o que a nossa cultura herda é o modelo feminino estigmatizado, ora a dona de casa, comportada e recatada, ora aquela que foge a regra, a prostituta, desvairada, sem eira nem beira, a que serve apenas para ser usada, xingada, humilhada e, por que não, estuprada por aqueles que perpetuam esse maniqueísmo. Por causa disso, outra pesquisa feita pelo IPEA em 2013 relatou que mais de 50 mil mulheres foram mortas no país. Depois de ouvir a naturalização do estupro da boca de alguns fica fácil entender a razão de tantas mortes.
Ora, no país onde elas são musas de times de futebol, de campanhas de cerveja, estrelam capas de revistas voltadas ao nu masculino, estão na praia em micro peças, se incomodar porque estão com roupas sensuais é um tanto controverso. Os que julgam esse quesito não são tão atentos como deveriam, pois basta ligar a TV ou passear por pontos badalados para verificar que os temos mudaram e, com ele, a quantidade de roupa. Por essa razão, é contraproducente taxar nossas moças, que vivem no meio dos trópicos, a se vestirem de forma mais “adequada” para não serem agredidas. O que deve aumentar não é a roupa feminina, mas o respeito masculino. Eles devem ser orientados a não invadir o espaço delas, sem permissão. Aprender que elas são independentes nas suas escolhas e não seres que existem apenas para o usufruto deles. Perpetuar para elas também essa autonomia e autoconfiança, pois só assim conseguiram se firmar nessa terra sem lei e dominada pelos homens.
A posteriori, essa pesquisa teve pontos importantes. O primeiro deles foi constatar que existem pessoas que vivem no século 21, mas com a cabeça no 16. Bom saber que a ignorância no Brasil é medida em número, já que mais da metade dos brasileiros opinaram a favor do estupro e não do respeito e da tolerância. Bacana ver que por mais que haja esforço das ONGs em desconstruir o preconceito e a violência contra as minorias, há centenas e milhares de pessoas nadando contra a maré. Essas ironias servem apenas para que possamos refletir sobre o modelo de sociedade que estamos deixando para as futuras gerações. Uma sociedade limitada, desinformada, preconceituosa e assumidamente violenta. Agora já temos ciência das deficiências do país nesse sentido, basta potencializar a educação para reverter tal realidade, mesmo que seja a longuíssimo prazo.
Portanto, sentenciar alguém ao estupro é um ato falho, que vai de encontro aos direitos humanos e, sobretudo com o dever universal de respeitar o semelhante, independente da postura que ele exerce na sociedade. Mais importante ainda é valorizar o ser mulher e destacar que ela não é fantoche dessa sociedade centrada no macho, para ser vítima de violência gratuita e despropositada. Antes de tudo, é preciso entender que cada pessoa tem a autonomia de se vestir como quer, pois isto não vai caracterizá-lo como inferior ou superior. No caso das mulheres, o fato de uma usar trajes mais sensuais não dá abertura para ninguém bulinar seu corpo ou taxa-la de vadia. Mais respeito com as prostitutas, pois elas são honestas e pagam suas contas sem precisar inferiorizar ninguém. Mais respeito com as mulheres que se sentem livres para usar o que querem e se arriscam nesse país que vive uma eterna incoerência: apela constantemente para o sexo na música, na mídia, na cultura em si, porém, paga de bom samaritano quando alguém usa algo “fora do comum”. Dessa forma, antes de ser algoz se coloque no lugar da vítima e se faça a seguinte pergunta: Você gostaria de ser estuprado? Com certeza, não! Sair da zona de conforto é estar no lugar do outro, experienciar a sua dor, vivenciando-a. Só assim entenderemos o que é ser minoria.
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