O preconceito não escolhe hora, lugar, classe social e, pelo visto, nem cerimônia para se manifestar. A listagem do Oscar 2016 comprova essa máxima. Ao divulgar uma lista com seus concorrentes todos de pele clara, aquele evento anuncia para todo mundo ver que o racismo não está limitado as baixas classes econômicas, ou a um assombramento histórico, visto por muitos como ontológico. A diferenciação racial encontra terreno fértil, sobretudo nas camadas mais favorecidas, das quais o acesso a bens de consumo, inclusive a arte, são restringidos aos majoritariamente favorecidos: os brancos. Embora seja uma verdade quase que incontestável, há sempre aqueles contrários a existência do racismo, como tentativa de deslegitima-lo e/ou silenciá-lo. Muito embora seja impossível extirpar o preconceito da sociedade, e por essa razão o preconceituoso, é sempre pertinente resgatar a temática racial na esperança de desconstruir futuros preconceitos em torno desse assunto. Foi o que talvez despretensiosamente a polêmica do Oscar tenha feito.
Curiosamente, quando li sobre a hashtag #OscarsSoWhite, não culpei, a priori, os organizadores da cerimônia por não colocarem em sua listagem deste ano algum ator negro como possível concorrente a estatueta. Pensei que a banca não tivesse encontrado candidatos de cor a altura de competirem com atores de pele mais clara. Entretanto, por outro lado, conjecturei: por que isso ocorreu pelo segundo ano consecutivo? Será que por falta de atores competentes de pele negra? Não. Numa segregação racial menos velada do que a Brasileira, da qual negros e brancos não se homogeneízam, acharam por bem deixar isso ainda mais evidente ao excluírem atores e atrizes negros de sequer comporem o quadro dos seletos escolhidos da premiação 2016 do Oscar. O problema é que com essa atitude, o próprio Oscar ingenuamente deixa claro o que no Brasil já é uma realidade há tempos: a cultura erudita, bem como as consideradas “boas artes”, não estão abertas aos negros, muito menos em premiá-los.
videntemente que essa demonstração de preconceito não passaria despercebida por outros artistas. O boicote foi a arma utilizada por atores, cantores e diretores de protestar nas redes sociais contra a soberania branca no Oscar. Achei a alternativa válida, sobretudo porque é no levante que nasce a discussão e, geralmente, a problematização do tema. É preciso falar sobre o racismo que corrompe vidas nos espaços público, privado e agora midiático internacional, já que aqui no Brasil isso já vem ocorrendo há anos em nossas telenovelas. Muita falação veio à tona, ao passo que muito preconceito foi jogado no ventilador até mesmo por algumas celebridades que classificaram o boicote como “racismo contra brancos”, alegando que a premiação do Oscar se dá por merecimento e não por melanina. Ora, é indubitável que os mais talentosos devem ser agraciados por seus méritos. Porém, é inquestionável o erro que há nos critérios de avaliação desse prêmio, dentre tantos outros, que há anos vem prestigiando, em sua maioria, celebridades brancas e quase ninguém questiona o porquê disso.
Fiquei pensando também nas implicações desse acontecimento por aqui onde o racismo é ensinado, naturalizado, midiatizado e institucionalizado. Lembrei imediatamente em filmes nacionais como Cidade de Deus e Tropa de Elite, dentre outros, cujo pano de fundo é a marginalização negra na periferia simplesmente mostrada e não aprofundada, colocando o espectador na posição de perpetuador dos discursos de sempre em torno dos negros. O reflexo disso é toda uma herança negra deturpada e obscurecida. É por isso que não se destaca a cultura desse grupo na mídia como se deveria. Quando o faz é com chacota, geralmente atingindo sua religião ou atribuindo-lhe o estereótipo do malandro. Falta também representatividade para romper esse discurso. Atores como Lázaro Ramos precisam suar muito a camisa para fugir desse padrão e conseguir algum destaque midiático que não se restrinja a novelas de época, tendo o negro interpretando mais uma vez o papel exaustivo de escravo. Casos como o dele, porém, são minúsculos se comparados com a quantidade imensurável de negros subalternizados dentro e fora da mídia. Fica claro que o que é de negro não merece ser reproduzido, tampouco premiado.
Ao segregar o negro ao patamar sempre de coadjuvante, isso quando este não é obscurecido totalmente, Hollywood, e porque não o mundo, impuseram a ele a criação de uma subcultura, nascida da revolta de um grupo desprovido de oportunidade de fazer e mostrar sua arte. No Brasil, não faltam exemplos nesse sentido. Da capoeira, ao Candomblé, do samba ao maracatu, do funk ao hip hop, os negros foram limitados a expressar sua arte em guetos e, a partir da intervenção branca, é que algo poderia ser alçado ao limiar de cultura de qualidade, como é o caso do samba. Ou seja, o que a cerimônia do Oscar fez não foi apenas limitar a presença negra em sua premiação, mas sim ratificar a limitação da mídia como um todo em retratar esse negro em sua tela, respeitando entre outras coisas a sua ancestralidade e herança cultural. Digo isso porque todas as vezes que uma minoria ganha espaço na grande mídia, surgi também as causas de um grupo, suas conquistas e demandas. É como se aquele indivíduo representasse mesmo que silenciosamente uma massa. Agora entendemos por que a ausência de negros entre os candidatos ao Oscar incomodou tanto nas redes sociais, pois muitos não se viram pertencendo ao padrão exposto pela premiação.
Esse foi o tiro pela culatra dado pela premiação. Acredito que eles pensaram que ao anular a presença negra da premiação, pela segunda vez consecutiva, não iria ser notada por aqueles que vivem o preconceito na prática. Depois de evidenciada a inescrupulosa ação do Oscar, o próprio evento se prontificou em fazer ajustes na premiação ao longo dos próximos anos, agregando com mais cuidado negros e latinos à premiação. Ora, com tal atitude, o maior prêmio cinematográfico do planeta assume para a grande mídia o equívoco cometido em selecionar apenas atores em uma indústria fílmica claramente heterogênea? Será que abrir uma “cota” para negros, dentre outras etnias, é a ideia mais acertada nesse sentido, do que reconhecer a cultura desse grupo, seus talentos, bem como a sua influência para formação cultural do mundo, trazendo tamanho legado para dentro da grande tela sem vitimismos nem pieguismos? Ou será que tudo isso não passou de mais uma estratégia de marketing para atrair mais holofotes para àquela celebração, da qual a vaidade é a única protagonista? Certamente, não é possível mensurar as reais intensões do Oscar diante ao espetáculo que se criou em meio a essa polêmica, mas é pertinente especular.
O cinema hollywoodiano é, sem dúvidas, uma grande indústria de arrecadação monetária. A festa do Oscar configura-se como o ápice dessa celebração. Toda publicidade a mais é bem vinda para atrair a atenção da mídia internacional para tal evento, cada vez mais previsível e repleto de clichês. Foi o que talvez toda essa polêmica tenha proporcionado ao Oscar: mais publicidade gratuita, dando visibilidade a festa que a cada ano tenta surpreender, mas peca pela previsibilidade nas premiações. Além disso, ao proporcionar, depois de protestos, uma fissura para que artistas negros tenham maior presença entre os futuros indicados a tal festa, não pense que estão fazendo isso para agregar valor ao Oscar. Pelo contrário, é mais uma tentativa fracassada da academia de não entender que não é preciso “facilitar” a entrada de qualquer grupo étnico no seio das mais aclamadas celebridades mundiais. Não é isso que os atores e atrizes negros estão buscando. Eles precisam de roteiros que os protagonizem cinematograficamente frente ao mundo externo, onde eles são figurantes de suas próprias realidades. Os artistas negros precisam ser premiados não pelo o que são, mas pelo que estão fazendo e vivendo em suas realidades, dentro ou fora da tela, bem como mulheres, gays, judeus, índios, pobres, dentre outras minorias, vivem suas mazelas e não as veem sendo devidamente representadas pelo próprio cinema.
Se não há uma representação real para esses grupos, nos quais o negro se tornou protagonista em 2016, o que será dos anos seguintes. Percebam que a mesma lista que cunhou a polêmica atual não contém nenhum artista pobre, gay, nem de descendência claramente indígena. Ou seja, o cinema que deveria ser responsável por prestar um serviço à sociedade - ao retratar a realidade além das metáforas existentes, contradições e exclusões-, com os recursos linguísticos/literários/artísticos capazes de repaginar aquelas realidades, numa outra mais possível, subversiva e transgressora, caminha à marcha ré disso ao impedir que tais dicotomias invadam as fronteiras do cinema afim de ressignificá-las. Em outras palavras, o Oscar deixa claro o desserviço das artes para com aqueles que historicamente foram, e ainda são, invisibilizados pela grande massa a partir de preconceitos históricos pré-concebidos, em um panorama educacional que não inclui, mas sim reproduz os estamentos de sempre sobre quem pode ou não fazer parte da seleta lista dos majoritários; assim como dos que podem ou não ser premiados com a estatueta brilhante.
A despretensiosa atitude do Oscar 2016 trouxe ao jugo popular a necessidade urgentíssima de se validar a cultura e herança dos negros no cinema, e nas artes em geral. É preciso resgatar o diálogo de que se precisa para entender melhor o que é o racismo, sua manifestação em públicos diversos, a participação dele nas mais diversas esferas sociais, para enfim lidar com esse problema da melhor forma possível no cinema. Mesmo que muito chorume tenha sido derramado em forma de palavra – já que não é possível impor limites para a ignorância alheia -, é na discussão entre mentes distintas que se encontram as armas para a construção de um debate mais salutar sobre esse e tantos outros temas. Talvez essa tenha sido a principal lição deixada por tudo isso: o empoderamento de diversas pessoas em prol de uma causa tão antiga, quiçá ultrapassada, mas que insiste em ressurgir para deixar bem claro como o ser humano é regredido no que se refere à questão racial. Também é válido mencionar o papel da grande rede em propagar os discursos que viralizam na internet causando uma grande repercussão e, com isso, possibilitando novos diálogos. Obviamente, tais discursos devem ser antes filtrandos, separando as impurezas da intolerância a qual infelizmente domina o meio virtual.
Ainda há muito a ser feito para que “falhas” como a do Oscar não voltem a se repetir. Como disse Viola Davis “a culpa não é do Oscar”. Concordo plenamente com ela. Porém, vejo esse evento como possível modificador dessa realidade e, ao invés disso, ele prefere reproduzir os mesmos dilemas da realidade. Por quê? Porque o preconceito insurge no desconhecimento. A academia não sabe o que é ser negro. Não conhece suas lutas e dissabores diários. Não vê a realidade com os olhos dessa minoria. Nem sequer sabe o que é ser minoria. Por isso é difícil reproduzir fidedignamente os negros, da mesma forma que presenteá-los. Como premiar a quem cujo talento não foi dado espaço? Sem essa avaliação, coube ao cinema Americano a triste ideia de reproduzir a sua realidade branca nas milhões de salas de cinema espalhadas pelo planeta, esquecendo-se das inúmeras demandas vivenciadas pelo seu público heterogêneo. Por isso, quando anunciarem: E Oscar vai para?! Nem se entusiasme, pois levará tempo até que o cinema, e as artes no geral, protagonizem aqueles que estão penando como figurantes na sociedade.
“O enfrentamento do preconceito deve começar ampliando essa visão do outro, preferencialmente nesse caso com óculos 3D, para não restar nenhuma dúvida de sua existência”.
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