Definitivamente é a imprevisibilidade
que compõe a prova de redação do Enem. A deste ano ratifica este meu pensamento
ao trazer um tema imprevisto por vários profissionais, alunos e entusiastas
redacionais. Intitulado como os "Desafios para a formação educacional de
surdos no Brasil", tal tema marca a consolidação de uma mudança nesta
prova ocorrida desde 2014, quando o tema sobre publicidade infantil serviu de
pano de fundo para discussão textual. Além de deixar mais do que claro que a
banca de agora em diante pode trazer qualquer temática para além dos clichês
previsíveis, os quais estampam sites, blogs e aulas de redação.
Para
quem tratou em sala de aula a respeito dos deficientes físicos, bem como de
inclusão educacional, possivelmente ofertou aos alunos algum subsídio para a
construção de um texto correlacionado ao tema 2017. Felizmente, uma das minhas
apostas deste ano se referia ao universo dos deficientes físicos, mas não
esperava que o Enem especificasse qual seria a deficiência. Foi o hipônimo destacado
do hiperônimo. Entretanto, dentro do bojo trabalhado em sala, há inúmeros
argumentos facilmente encaixáveis no que foi exigido pela prova, sobretudo
aqueles que explicam as dificuldades de ser deficiente no Brasil.
Em
1985, se não me engano, foi o ano instituído pela ONU como o de discussão a
respeito dos deficientes, um marco na história desses indivíduos muitas vezes
esquecidos pela sociedade. Para além disso, o encontro de várias nações em
Salamanca também merece ser destacado como episódio marcante na trajetória dos
deficientes. Bem lá atrás, porém, há marcas mais profundas de total eliminação,
se tomarmos como base Grécia e Roma Antigos, sobretudo a primeira em cidades
como Esparta, onde quaisquer imperfeições eram sacrificadas como prática cultural
daquela civilização.
Dentre
as muitas dicotomias históricas das quais os deficientes foram vítimas merecem
destaque a utilização deles para experimentos nazistas e a exaltação dos
soldados americanos mutilados no mesmo período de guerra. Fruto disso, houve
lentas e significativas mudanças em prol dos deficientes. As técnicas
relacionadas a fisioterapia, terapia ocupacional, dentre outras correlatas
começaram a surgir pós holocausto. Espaços de deficiência e não para
deficientes, conhecidos como Upias, começaram a ser discutidos. A idealização
de um Desenho Universal, termo que designa espaços voltados a inclusão de
quaisquer pessoas, inclusive os deficientes, passaram a ser imaginados como
mecanismos de inclusão.
Tudo isso parcimoniosamente estava
atrelado ao tema. Entretanto, ao trazer a surdez e a educação como norteadores
da discussão, o Enem esperava maior dinamismo dos alunos. Como se sabe, a
esfera educacional brasileira é falha no que tange o acesso desses indivíduos
ao ambiente escolar. Falta pessoas capacitadas para inseri-los ao seio social.
Numa sociedade que tem como herança o homem vitroviano de Leonardo da Vinci,
qualquer imperfeição é ignorada e passa a compor as muitas negligências
educacionais do país.
Mesmo com a inclusão da matéria de
libras nos cursos de graduação em Letras, não foi o bastante para atender a
demanda desses indivíduos na sociedade. Então, desde a infância muitos surdos
encontram entraves em receber uma formação educacional formal devido a carência
de recursos, humanos e estruturais, capazes de atendê-los. Isso se prolonga na
vida adulta, impedindo que estas pessoas possam percorrer os mesmos caminhos
escolares/universitários dos não surdos.
Ademais, isto se dá por causa da ensurdecedora sociedade em que vivemos, onde
qualquer comunicação que não se refira a fala é excluída.
Por esse ângulo, o processo de
formação educacional peca em não priorizar uma educação linguística mais
completa, comprometida com a leitura, escrita, compreensão dos signos
linguísticos e da fluidez em que eles podem se manifestar. Isso resvala
diretamente nos surdos e sua linguagem comunicacional única. Sem acesso a este
universo, cria-se um gueto onde os surdos ficam isolados da interação com o
mundo considerado normal. Possivelmente, este seja um dos maiores empecilhos
deste grupo, pois não se limita apenas aos deveres impostos pelo MEC, mas,
sobretudo, de assegurar o acesso pleno a uma educação inclusiva de fato.
A psicopedagoga Argentina Alicia
Fernandez no seu livro a Atenção Aprisionada já advertia que estar em silêncio
não é o mesmo que estar no silêncio, muito menos se calar. Habitar o silêncio
para não silenciar. Paralelamente o cinema mudo de Charlie Chaplin, repleto de
sons implícitos no jogo de linguagem pictórica, imagética e gestual, atestam à
psicopedagoga. Outrossim, numa sociedade de falantes, os surdos são ainda mais
emudecidos pela tagarelice social, o descaso político, a invisibilidade
midiática, a falta de representatividade cultural e a herança de violência
histórica da qual os deficientes, dentre eles os surdos, herdaram.
Então, se o acesso à educação,
assegurado pela Constituição, não é efetivado, temos um problema grave de
inclusão, que fere diretamente os direitos humanos. Mais complexo ainda é tal
ausência de direitos numa sociedade alicerçada pela fala como meio mais usual
de comunicação entre os falantes. Então, o papel da AACD, como espaço voltado a
cuidar desse público, bem como da própria esfera escolar, no que se refere ao
ensino amplo de linguagem, precisaria ser alavancado, sobretudo na conclusão. É
evidente que o governo e a precária difusão midiática/virtual sobre esse tema
também poderiam ser responsabilizados pelo descaso para com os surdos. Além, é
claro, da sociedade que não insere todos os seus membros, garantido a efetivação
plena de todos os seus direitos.
Passado o susto, o aluno deveria ter
percorrido o caminho penoso do que é ser deficiente físico no Brasil
relacionando à inclusão deles no universo educacional e suas barreiras. Nada de
mais. Entretanto, além de alunos, nós professores, entusiastas e amantes de
textos, precisamos escutar o Enem de agora em diante. A prova mudou a abordagem
e não está se agarrando a clichês para satisfazer as expectativas dos muitos
magos redacionais espelhados pelo país. Nada mais que o incerto guia esta
prova. Entretanto, é possível enxergar em meio ao breu de temas dados ao longo
do ano, se todos os envolvidos no processo redacional se comprometerem com a
leitura intensa, ampla e desligada de apostas previsíveis. Quem fará isso estará
mais que preparado para fazer qualquer temática trazida pelo Enem, mesmo que
ela seja a mais "insana" possível.
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