Ao assistir o DVD de Maria Bethânia, intitulado de Carta de Amor, percebemos que há um clima novo no ar. Para quem acompanha o trabalho da cantora sabe bem disso. Bethânia parece mais madura, seus versos ressoam com um ímpeto impressionante, como uma saraivada de balas prestes a fuzilar os presentes. A boca armada, porém, não tem a intenção de ferir ninguém. Ela, como em muitos de seus espetáculos, oferta ao espectador à oportunidade de pensar através da música, com letras marcantes adornadas com poemas e poesias escolhidos com profundidade pela intérprete, que dão toda a magnitude ao seu fazer artístico. Dessa vez, o tema central foi o amor, em toda a sua multiplicidade. Não o amor quebrantado, cheio de melodrama, mas àquele ferido, magoado, intenso, repleto de dolorosas intenções. Ou seja, Bethânia subliminarmente deixou o recado que o amor e a dor são parceiros inseparáveis, pena que poucos entenderam essa mensagem.
O show não poderia começar de forma mais apropriada. “Canções e momentos”, de Milton Nascimento, abre o espetáculo e Bethânia avisa que o ofício dela durante toda a sua carreira foi, e ainda é, fazer o casamento da música com os incontáveis momentos da vida. Depois disso, ela sangra ao som de Gozaguinha, numa intensidade impressionante. O impacto disso é brevemente aliviado com “Salmo”, a conseguinte canção. De repente, como um raio que rasga o céu e atinge o chão, ela se torna e dona do trovão, ousada representação de Iansã. É então que a materialização da religiosidade se apresenta para compor e decompor a cantora devota, que canta e dança no embalo da canção, como se estivesse invocando o próprio orixá feminino. Ela ainda recita Procelária, da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Anderson, assumindo a couraça da ave que “é vista quando há vento e grande vaga...”.
Com o fôlego no limite, ela recita ainda o belíssimo texto “Cântico Negro”, de José Régio. Nele, a cantora desabafa. Sua expressão desconfigura-se em ressentimento. A dor toma conta da sua face, mas é rapidamente substituída por outro sentimento, talvez raiva. Não sabemos ao certo. Tudo que vem dela assume uma incerteza absurda. O que pré-supomos é que seja um recado à polêmica envolta da Lei Rouanet, da qual ela acabou desistindo. Suposições que se encerram por aí, pois o pesar expresso por Bethânia vai além das difamações em torno da sua arte. Dói nela o desrespeito desse povo, que não valoriza o trabalho de artistas como ela, dedicados a valorizar o que ainda resta de poético no cancioneiro brasileiro. Machuca a perda da mãe, Dona Canô, importante ícone da cultura baiana e, consequentemente do país, que se foi durante a temporada de show da cantora. Entre tantas outras dores diárias, as quais anônimos, ou notáveis como Bethânia, não estão imunes. Tudo isso resultou no registro da Carta de Amor.
Incansável, ela dispara “Não enche”, música forte do seu irmão Caetano Veloso. Em seguida vem “Fogueira”, “Casablanca”, “Na primeira manhã”, todas intencionalmente convidando-nos a pensar. Sem perder o fio da meada, Bethânia canta “Calúnia”, um aviso claro sobre os perigos que as palavras exercem quando são mal ditas. Depois, envaidece com o clássico “Negue”, de Chico Buarque, como num gostoso deboche que questiona os presentes e todos aqueles que ousaram macular a imagem de Bethânia: “Diga que já não me quer...Negue que me pertenceu...”. É difícil dizer que não, diante de uma interpretação sobriamente perfeita. Quase no final do I ato, ela canta “Barulho”, uma silenciosa poesia, que acalma o frenesi da anterior. Aí vem a “Fera ferida”, mas viva, resistente e pronta para atacar, se acuada. Nos últimos instantes, ela emociona e pergunta: “Quem me leva os meus fantasmas?” como se clamasse por ajuda, sem resposta.
No II ato, Bethânia faz a “Festa” com Gonzaguinha. Mesmo cometendo uma falha no início da canção, nada parece abalar o estrelato dessa artista. Rapidamente, ela se recompõe e volta a fazer o que faz de melhor, encantar. Continua a interpretar grandes nomes da nossa música, entre eles Arnaldo Antunes, Dorival Caymmi e Chico César. Este último merece o destaque para a emocionante interpretação da cantora para a música “Estado de poesia”, a qual ela deixa mais um dos inúmeros recados subliminares desse show. E o espetáculo não podia deixar de tocar os sambas de roda baianos, com suas toadas características e o gingado para lá de peculiar. Após musicar a casa de várias formas, Bethânia canta a canção mais aguardada, “Carta de amor”, que dá nome ao CD e ao DVD. Forte, intrigante, e, por vezes, ameaçadora, a intérprete anuncia “Não mexe comigo, que eu não ando só...”. Claro que não. Ela anda rodeada de fé, numa espiritualidade exemplar que deveria servir de modelo para essa sociedade de incrédulos, sobretudo aqueles que exterminam a fé alheia sobrepondo uma doutrina sobre as outras.
Impossível não ser impactado pelo bom gosto musical de Bethânia. Seu trabalho de seleção de repertório não pode ser encarado como um mero show. É um espetáculo engenhoso de uma artista preocupada em retratar um Brasil musicalmente genuíno, sem a pirotecnia e a artificialidade que dominam a cena musical do país. Bethânia, nesse sentido, é uma relíquia, uma obra de arte viva, da qual poucos têm a sensibilidade de apreciar. Por desconhecer sua essência nos palcos, os leigos preferem calunia-la, com palavras ferinas que não condizem com o seu fazer artístico. Diante disso, ela tentou se neutralizar, ou se armar, talvez. O resultado foi o espetáculo Carta de Amor, do qual ela mostra a que veio e não se apresenta abalada pelas críticas ou pela falta de sensibilidade poética daqueles que vivem nessa nação. Pelo contrário, ela nos mostra a face do amor real, aquele que se entrega e, por isso, sofre. E ela sofreu ao fazer esse show, de inúmeras formas. Sofreu de saudade daqueles que se foram; de frustração por não ser valorizada e de pena por não ser entendida. Tomara que, no amor ou no ódio, na alegria ou na tristeza, e sempre com saúde, Bethânia continue fazendo seu belíssimo trabalho de abrilhantar os palcos brasileiros com arte de verdade.
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