A Copa do Mundo na Rússia: Os Preconceitos à Brasileira que Insistimos em Exportar



Não precisa ser fã de futebol para ser bombardeado pela cobertura massiva dada pelos veículos de comunicação nacional. Quando não são estes, uma breve olhadela nas ruas mostra a mudança clara na rotina dos brasileiros na tão esperada Copa do Mundo de Futebol. Para fins de entretenimento, é plausível tamanha mudança comportamental, visto que o Brasil tem longo histórico de vitórias nessa competição, além de ser aclamado mundo a fora por seus feitos nessa área. Em 2018, porém, possivelmente o país do futebol, dos craques multibilionários, dos torcedores apaixonados, ficaremos conhecidos também como o país que exporta preconceitos já conhecidos pela nação. Entoados com o mesmo orgulho quanto os versos que embalam o hino nacional, tais violências não se restringem ao campo da fala, mas representam toda uma cultura, que pode até perder a taça de campeã mundial, porém já está consolidada no pódio entre as nações mais intolerantes do mundo.

O episódio com a repórter russa deu o ponta pé inicial para a vexatória realidade vivida por muitas mulheres no território brasileiro: a banalização do assédio. Esta que surge do preconceito que se tem em torno da liberdade sexual feminina, ainda aprisionada por conservadorismos do sexo dominante, o masculino, o qual dita regras imutáveis sobre os comportamentos sexuais das mulheres. Fora de campo, elas são privadas de sentir prazer, de falar acerca de, tão pouco militar abertamente sobre essas lacunas sem serem hostilizadas por isso. Cientes dessas limitações, o Brasil objetifica o seu corpo a belprazer, seja exportando o modelo apelativo negra-seminua-globeleza como “símbolo nacional”, seja invadindo o espaço de mulheres estrangeiras para reafirmar a ignorância tolerada aqui. Por essa razão, homens brancos, cisgêneros e elitistas não viram problema em gravar um vídeo assediando aquela jornalista em um país estrangeiro, já que em seu território, os perfis sociais ocupados por eles lhes garantem plena liberdade de abusar de mulheres, muitas vezes fora do âmbito da linguagem.

Antes de iniciar a Copa, porém, é preciso lembrar que os campos futebolísticos são os cenários preferidos pela sociedade para escancarar seus preconceitos ancestrais. Embalados pela ânsia da vitória, torcedores não se intimidam em discriminar outros torcedores, atletas e pessoas importantes no cenário nacional. Os casos de racismo são um exemplo disso. De bananas jogadas no campo a piadas grosseiras destinadas a jogadores negros, muitos foram os casos em que a cor de pele foi usada como recurso discriminatório. Também entram na lista condutas homofóbicas, como a vivida pelo jogador Richarlyson, talvez o único atleta desse esporte de “machos alpha” a assumir publicamente sua homossexualidade. De quebra, não poderia ficar de fora as ofensas de cunho machista voltadas a nossa ex-presidenta Dilma Rousseff, ao longo do famigerado golpe do qual todos hoje somos vítimas. Nos diversos jogos da seleção, brasileiros abastados, brancos e autodenominados heterossexuais, faziam da arquibancada sua tribuna onde esses e outros preconceitos eram repetidas vezes proferidos sem receberem as devidas punições.

Em comum, essas ações violentas destoam da atmosfera integradora que compõe a Copa do Mundo. O que se espera de um mundial assim é respeito, aceitação, tolerância, palavras não assimiladas por muitos brasileiros porque não foram, e ainda não são, devidamente ensinadas. O que é repassado aqui é oposto disso, encorajando muitos indivíduos a levar em suas bagagens os sentimentos mais odiosos para além mar. Da mesma forma, é vergonhoso ver o nosso país, um dos mais prestigiados no quesito futebol, ser o protagonista de episódios como aquele da repórter russa e também de outros, como o vídeo viral do qual um outro brasileiro pede para crianças russas falarem palavrões e frases de cunho sexual direcionadas a Neymar. Percebemos, portanto, que os xingamentos até aqui tem a finalidade de validar toda uma construção histórico-social voltada a inferiorizar as minorias, uma conduta por si só incoerente, pois muitos dos ídolos futebolísticos emergiram das realidades malogradas por esses torcedores.

Felizmente, a internet não tem deixado impune as ações de muitos preconceituosos. Caso escapem das punições legais, o povo trata rapidamente de sentenciá-los à condenação em meio a atmosfera politicamente correta em que vivemos. Isso já é muita coisa, mostra o quão inconiventes somos com posturas discriminatórias, pelo menos em tese. Entretanto, a prática precisa ser reavaliada. O que vemos dentro ou fora dos campos de futebol, dos terrenos de brejo aos estádios colossais da Copa do Mundo, precisa ser revisto. Um país totalmente voltado a uma supervalorização futebolística desalinhada dos ideais educacionais, tão caros à formação do torcedor consciente, perde pontos preciosos na corrida rumo ao tão sonhado hexa. Na verdade, somar taças de campeão mundial em meio as vergonhosas demonstrações de desrespeito vividas nessa copa não deveriam ser motivo de orgulho para nação, mas um ponto de inflexão a respeito daquilo que estamos exportando para o mundo, além de ostentar títulos quando o país vive em um verdadeiro atraso humanitário.

Perdemos também quando não assumimos o quão preconceituosos somos. Independente da Copa do Mundo, o Brasil foi construído a partir do alicerce da segregação e ainda hoje vive sustentado por essa base. Então, quando o Ministro dos Esportes diz que os rapazes que assediaram a russa “não nos representam” está incorrendo pela dissimulação dos fatos. Somos sim preconceituosos, intolerantes, desrespeitosos, para com os grupos minoritários e eventos mundiais esportivos como a Copa, voltados a legitimar os grupos dominantes, só reforça essa ideia. Assim, o torcedor, o qual deveria ir a campo munido de humanidade suficiente para torcer pelo seu time sem recorrer aos preconceitos sociais como válvula de escape, faz justamente o contrário porque essa foi a forma do qual ele foi moldado. Dessa maneira, mal resolvido no campo das sexualidades e no respeito às diferenças, a sociedade bate um bolão de idolatria verde-amarela nesse período e mostra a inesgotável fonte distorcida de seu patriotismo à brasileira eivado de ódio.

Para uma cultura claramente elitista/machista/racista/homofóbica como a nossa, usar da linguagem para depreciar o outro representa o tamanho do fosso criado por um processo histórico-político-educacional voltado a legitimar condutas preconceituosas ao invés de problematizá-las e, por fim, extirpá-las da sociedade. Abismo este que se aprofunda no interior de cada brasileiro educacionalmente despreparado para lidar com a diversidade. Então, o que deveria ser banido, passa a ser corriqueiro, levando ao mundo uma face deplorável de um país visto como pacífico, quando, em seu íntimo, é profundamente violento. Por isso, aqueles brasileiros lamentavelmente nos representam, pois todos nós temos nossa parcela de culpa nesses casos, por naturalizar aquele tipo de violência dentro ou fora de campo; por não problematizar de fato as questões caras aos grupos minoritários; por torcer a cara para suas lutas, reivindicações e dilemas; e, sobretudo, por não somar forças em suas pautas políticas-sociais e legais. Então, conscientes ou não, estamos exportando preconceitos, mas não tem importância. 

O que vale é ser hexa!

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