Não precisa ser Cristão para saber que os
fundamentos deixados por Jesus na terra têm sido deturpados por hordas de
hereges, travestidos sob o manto da evangelização, cuja irrupção na política
tem deixado marcas tão profundas quanto na Idade Média. Desse coquetel molotov
político-religioso nacional, advindo da onda ultradireitista do governo
Bolsonaro, não há uma divisão clara do que seria céu e inferno. Tais instâncias
coexistem aqui na terra nos limítrofes determinados por quem se acha merecedor
de ocupar o firmamento, ao passo que relega as chamas infernais aqueles que não
coadunam com suas demarcações. Porém, a fala do impronunciável ministro da
educação a respeito da reportagem de Drauzio Varella, sobre a realidade
prisional das travestis e transexuais, demonstra em sua potência verbal a força
de quem tem propriedade para falar de inferno, pois este está alocado nas
entranhas daquele indivíduo.
Como se sabe, é cada vez mais complexo determinar
onde começa a política e termina a religião, tamanha intromissão desta no
cenário público nacional. Com a democracia em ruína, e o alavancar do
ultraconservadorismo, a metamorfose entre ambas tem feito estragos imensuráveis
na sociedade. Um deles é permitir que a instância educacional tenha um
ministrado que se apropria de conceitos religiosos para tratar de temáticas
sociais. Ao fazer isso, o “imprecionante” ministro da educação deixa mais que
claro o caráter punitivista da governança atual. Uma posição tirânica, por isso
controversa, de quem deveria usar a fé para abrandar as violências, concretas e
simbólicas, que vitimizam a sociedade, sobretudo os grupos minoritários.
Certamente, Abraham Wheintraub representa esse novo
nicho religioso-protestante-petencostal-politico da qual certos grupos humanos
são passíveis de condenação. Não há julgamento, perdão, tão pouco absolvição.
Os direitos se restringem aos seus púlpitos eivados de uma retórica salvadora
ilusória, restrita a seus fiéis hipnotizados pelos brados de seus
pastores-políticos, os quais usam do sensacionalismo, e não do pecado, para
levar ao inferno seus desafetos. Foi isto feito no vídeo de Drauzio Varella. A
pachorra do ministro em atacar a atitude do médico escancara a tática infalível
que levou Bolsonaro à presidência, criar balbúrdia- a única verdadeira deste
desgoverno- para incitar os preconceitos infinitos da nação. Em parte,
funcionou. A travesti Susy, destacada no final da matéria jornalística, foi
ainda mais hostilizada por aqueles hipnotizados pelos delírios da atual
governança.
Entretanto, xingar no Twitter através das Fake News
só funciona para quem já foi infectado pelo vírus da burrice que assola o país
desde o golpe a Dilma Rousseff. Para os demais, imunes e essas sandices, a
atitude do ministro semianalfabeto escancara a falta de compaixão de setores
religiosos para com a população penitenciária, mas, sobretudo, os grupos
LGBT’s. Os que felizmente gozam de liberdade veem seus direitos serem
arruinados paulatinamente desde que a sanha bolsonarista irrompeu o poder, por
meio de falácias em torno do “kit gay”, ideologia de gênero, proibição de
discussões sobre educação sexual, meninos vestem azul e meninas vestem rosa,
doutros recalques protagonizados por quem tenta inutilmente castrar a
sexualidade humana. E, os detidos, idem. Dessa forma, diversos líderes
religiosos magistrados evidenciam com essas atitudes qual é o perfil
selecionado pelas suas Igrejas a ir ao céu: héteros, brancos e endinheirados;
desconfigurando o legado deixado pelo Cristo.
Na verdade, o que tocou na ferida desses impostores
foi ver na mídia o papel que deveria ser exercido por eles, sendo feito através
da solidariedade alheia. Assim, ao desmascarar o projeto de governo das
Igrejas, as quais, em suas figuras representativas na política, pouco se
importam com presidiários, bem como aqueles que estão à solta, se estes fizerem
parte dos grupos marginalizados por eles e usados como pêndulo a séculos para o
enriquecimento da Igreja Católica no passado e, hoje, das esferas protestantes.
O propósito delas é expandir seus espaços, não para disseminar o amor de
Cristo, mas para enriquecer por meio dEle. Isso numa nação construída sob os
pilares da fé e erguida nas frágeis paredes da ignorância pulveriza-se
rapidamente, sobretudo na realidade hiperconectada atual.
De volta ao inferno de Weintraub, mandar Varela e a
travesti Suzy para tal local não parece ser o mais apropriado. Para quem
acredita nessa condenação eterna, talvez seja um destino horrível imaginar uma
eternidade de sofrimento, em um lugar criado para punir os ditos ímpios da
terra. Porém, para muitos indivíduos, o inferno existe em vida. Susy e aquelas
travestis e transexuais estão cientes disso, pois, a criminalidade que as
abraçou advém de uma sociedade preconceituosa, responsável por inúmeras
violências, torturas, discriminações que resvalam em mortes psicológicas desses
indivíduos, quando não ceifam literalmente suas vidas. Por isso,
lamentavelmente, a morte parece ser para muitas delas o descanso diante de tudo
que sofrem. Todavia, há pessoas como o médico Drauzio Varella, antes de tudo
humano, capaz de se separar entre o joio e o trigo nesta seara. Tamanha seleção
prima pelo respeito profissional, dedicação a trazer dignidade para a vida de
pessoas cujas histórias de miséria contam com descasos no âmbito da saúde
física e emocional. Assim, um simples abraço, que poderia ter sido dado por
esses políticos pseudo sacerdotes de Cristo, foi ofertado pela simplicidade de
quem, distante de conotações políticas, apenas fez o que a governança e seus
correligionários são incapazes de admitir, o seu papel.
Ao invés disso, preferem retomar o espaço ficcional
de danação destinado aos pecadores, elaborado pelo Catolicismo, do que expressar
qualquer tipo de respeito a condição humana, a partir da óptica religiosa da
qual tanto usufruem. Porém, muito antes da representação dantesca conhecida
hoje por nós, o inferno é um estado moral. Talvez o lugar mais complexo onde o
humano possa ir. Trata-se de um espaço destinado às maledicências que a vil
capacidade humana é capaz de realizar. Contudo, a sociedade, através da
educação, tem papel crucial nisso, pois o conhecimento civiliza, humaniza, cria
seres empáticos, os quais, em consonância com o subjetivismo da fé, conseguem
moldar um caráter sempre em processo de ajuste. O estado de elevação capaz de
abraçar a diferença e levar até ela o aconchego negado por tantos preconceitos,
estes sempre precipitados a condenar ao fogo aqueles que Cristo certamente
levaria para luz. Enquanto não entendemos que o binômio céu e inferno é
intrínseco ao que somos, caímos nessa balela de condenar o outro aos braços do
capiroto, quando, na verdade, o coisa ruim já habita em muitos de nós.
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